Prova da irracionalidade de π
No século XVIII, Johann Heinrich Lambert provou que o número π (pi) é irracional. Em outras palavras, ele não pode ser expresso como uma fração a/b, em que a é um número inteiro e b é um inteiro não nulo. No século XIX, Charles Hermite encontrou uma prova que não requer nenhum pré-requisito de conhecimento além de cálculo básico. Três simplificações da prova de Hermite são devidas a Maria Cartwright, Ivan Niven e Bourbaki. Outra prova, que é uma simplificação da prova de Lambert, é devida a Miklós Laczkovich.
Em 1882, Ferdinand von Lindemann provou que π não só é irracional, como também é transcendental.[1]
Prova de Lambert
[editar | editar código-fonte]Em 1761, Lambert provou que π é irracional mostrando primeiro que vale a seguinte expansão em frações continuas:
Em seguida, Lambert provou que, se x é diferente de zero e racional, então esta expressão deve ser irracional. Como tan(π/4) = 1, segue-se que π/4 é irracional e, portanto, que π é irracional.[2] Uma simplificação da prova de Lambert é dada abaixo.
Prova de Hermite
[editar | editar código-fonte]Esta prova utiliza a caracterização de π como o menor número positivo cuja metade é um zero da função cosseno e na verdade prova que π2 é irracional.[3][4] Como em muitas demonstrações de irracionalidade, a argumentação é feita por redução ao absurdo.
Considere as sequências (An)n ≥ 0 e (Un)n ≥ 0 de funções de R em R, assim definidas:
Pode-se provar por indução que e que e, por conseguinte, que Logo, o que é equivalente a Segue disto por indução, e do fato de que A0(x) = sin(x) e que A1(x) = −x cos(x) + sin(x), que An(x) pode ser escrito como Pn(x2)sin(x) + xQn(x2)cos(x), em que Pn e Qn são funções polinomiais com coeficientes inteiros, sendo que o grau de Pn é menor ou igual a ⌊n/2⌋. Em particular, An(π/2) = Pn(π2/4).
Hermite também forneceu uma expressão fechada para a função An, a saber Ele não justificou esta afirmação, mas ela pode ser comprovada facilmente. Primeiramente, esta afirmação é equivalente a Procedendo por indução, considere n = 0. e, para o passo de indução, considere qualquer n ∈ Z+. Se então, usando integração por partes e a regra de Leibniz, obtém-se Se π2/4 = p/q, com p e q em N, então, uma vez que os coeficientes de Pn são números inteiros e o seu grau é menor ou igual a ⌊n/2⌋, o número p⌊n/2⌋Pn(π2/4) é algum inteiro N. Em outras palavras, Mas este número é claramente maior do que 0; portanto, N ∈ N. Por outro lado, e assim, se n é suficientemente grande, N < 1. Deste modo, obteve-se uma contradição.
Hermite não apresentou a sua prova como um fim em si, mas como uma reflexão posterior em sua busca por uma prova da transcendência de π. Ele discutiu as relações de recorrência para motivar e obter uma representação integral conveniente. Uma vez que esta representação integral é obtida, existem várias formas de apresentar uma prova sucinta e autocontida a partir do integral (como nas apresentações de Cartwright, Bourbaki ou Niven), que podiam ser vistas por Hermite (como ele fez em sua prova da transcendência de e[5]).
Além disso, a prova de Hermite é mais próxima da prova de Lambert do que parece. Na verdade, An(x) é o "resíduo" (ou "resto") da fração contínua de Lambert para tan(x).[6]
Prova de Cartwright
[editar | editar código-fonte]Harold Jeffreys escreveu que esta prova foi colocada como um exemplo em um exame na Universidade de Cambridge, em 1945 por Mary Cartwright, mas que ela não havia identificado a sua origem.[7]
Considere as integrais em que n é um número inteiro não negativo.
Duas integrações por partes resultam na relação de recorrência Se então isso se torna Além disso, J0(x) = 2sen(x) e J1(x) = -4x cos(x) + 4sen(x). Assim, para todo n ∈ Z+, em que Pn(x) e Qn(x) são polinômios de grau ≤ 2n, e com coeficientes inteiros (que dependem de n).
Tome x = π/2, e suponha, se possível, que π/2 = a/b, sendo a e b números naturais (em outras palavras, suponha que π é racional). Então, O lado direito é um número inteiro. Mas 0 < In(π/2) < 2 uma vez que o intervalo [−1, 1] tem comprimento 2 e a função que está sendo integrada assume apenas valores entre 0 e 1. Por outro lado, Assim, para n suficientemente grande isto é, seria possível encontrar um número inteiro entre 0 e 1. Essa é uma contradição que decorre da hipótese de que π é racional.
Esta prova é semelhante à de Hermite. De fato, No entanto, é claramente mais simples. Consegue-se isso passando a definição indutiva das funções An e tomando como ponto de partida a sua expressão como uma integral.
Prova de Niven
[editar | editar código-fonte]Esta prova utiliza a caracterização de π como o menor raiz positivo da função seno.[8]
Suponha que π é racional, ou seja, que π = a /b para certos inteiros a e b ≠ 0 que, sem perda de generalidade, podem ser tomados positivos. Dado qualquer inteiro positivo n, define-se a função polinomial f de R em R por e, para cada x ∈ R denote por a soma alternada de f e com suas primeiras n derivadas de ordem par.
Afirmação 1: F(0) + F(π) é um número inteiro.
Prova: Expandindo f como uma soma de monômios, o coeficiente de xk é um número da forma ck /n! em que ck é um número inteiro, que é 0 se k < n. Portanto, f (k)(0) é 0 quando k < n e é igual a (k! /n!) ck se n ≤ k ≤ 2n; em ambos os casos, f (k)(0) é um número inteiro e, portanto, F(0) é um número inteiro.
Por outro lado, f(π – x) = f(x) e portanto, (–1)kf (k)(π – x) = f (k)(x) para cada inteiro não negativo k. Em particular, (–1)kf (k)(π) = f (k)(0). Portanto, f (k)(π) também é um número inteiro e assim F(π) é um inteiro (na verdade, é fácil ver que F(π) = F(0), mas isto não é relevante para a prova). Desde que F(0) e F(π) são números inteiros, a sua soma também é.
Afirmação 2: Prova: Como f (2n + 2) é o polinômio nulo, tem-se As derivadas das funções seno e cosseno são dadas por sen' = cos e cos' = −sen. Portanto, a regra do produto implica Pelo teorema fundamental do cálculo Como sen 0 = sen π = 0 e cos 0 = – cos π = 1 (aqui é usada a caracterização de π mencionada acima, como um zero da função seno), resulta que a afirmação 2 é verdadeira.
Conclusão: Como f(x) > 0 e sin x > 0 para 0 < x < π (porque π é a menor raiz positiva da função seno), as afirmações 1 e 2 mostram que F(0) + F(π) é um inteiro positivo. Como 0 ≤ x(a – bx) ≤ πa e 0 ≤ sin x ≤ 1 para 0 ≤ x ≤ π, resulta da definição original de f, que que é menor do que 1 para n grande, de modo que F(0) + F(π) < 1 para estes n, pela afirmação 2. Isso é impossível para o número inteiro positivoF(0) + F(π).
A prova acima é uma versão polida, que é mantida tão simples quanto possível em relação aos pré-requisitos, de uma análise da fórmula que é obtida através de 2n + 2 integrações por partes. A afirmação 2 essencialmente estabelece esta fórmula, onde o uso de F esconde as repetidas integrações por partes. A última integral desaparece porque f (2n + 2) é o polinômio nulo. A afirmação 1 mostra que a soma restante é um número inteiro.
A prova de Niven está mais perto da de Cartwright (e, portanto, da de Hermite) do que parece à primeira vista.[6] Na verdade, Portanto, a substituição xz = y transforma esta integral em Em particular, Outra conexão entre as provas reside no fato de que Hermite já menciona[3] que se f é uma função polinomial e então, e a partir disso, segue-se que
Prova de Bourbaki
[editar | editar código-fonte]Bourbaki descreve sua prova em linhas gerais em um exercício em seu tratado de Cálculo.[9] Para cada número natural b e cada número inteiro não negativo n, defina Como Umn(b) é a integral de uma função definida em [0,π] que zera em 0 e em π e que é maior do que 0 nos demais pontos, Uman(b) > 0. Além disso, para cada número natural b, Uman(b) <1 para n suficientemente grande, porque e portanto Por outro lado, a integração por partes recursivamente permite a dedução de que, se a e b são números naturais tais que π = a/b e f é a função polinomial de [0,π] em R definida por então: Esta última integral é 0 pois f(2n + 1) é a função nula (já que f é uma função polinomial de grau 2n). Como cada função f(k) (com 0 ≤ k ≤ 2n) assume valores inteiros em 0 e em π (ver afirmação 1 da prova de Niven) e como o mesmo acontece com as funções seno e cosseno, isto prova que An(b) é um inteiro. Como ele também é maior do que 0, ele deve ser um número natural. Mas também foi mostrado que An(b) <1 se n é suficientemente grande, chegando deste modo a uma contradição.
Esta prova é bastante próxima a de Niven, sendo a principal diferença entre elas a forma como é demonstrado que os números An(b) são inteiros.
Prova de Laczkovich
[editar | editar código-fonte]A prova de Miklós Laczkovich é uma simplificação da prova original de Lambert.[10] Ele considera as funções Estas funções estão claramente definidas para todo x ∈ R. Além disso Afirmação 1: Vale a seguinte relação de recorrência: Prova: Isto pode ser provado comparando os coeficientes das potências de x.
Afirmação 2: Para cada x ∈ R,
Prova: De fato, a sequência x2n/n! é limitada (pois converge para 0) e se C é uma cota superior e se k > 1, então Afirmação 3: Se x ≠ 0 e se x2 é racional, então Prova: Caso contrário, existiria um número y ≠ 0 e inteiros a e b tais que fk(x) = ay e fk + 1(x) = by. Para ver o porquê, considere y = fk + 1(x), a = 0 e b = 1 se fk(x) = 0; caso contrário, escolha inteiros a e b tais que fk + 1(x)/fk(x) = b/a e defina y = fk(x)/a = fk + 1(x)/b. Em cada caso, y não pode ser 0, pois senão resultaria da afirmação 1 que cada fk + n(x) (n ∈ N) seria igual a 0, o que contradiria a afirmação 2. Agora, tome um número natural c tal que todos os números bc/k, ck/x2 e c/x2 sejam inteiros e considere a sequência Então Por outro lado, resulta da afirmação 1 que que é uma combinação linear de gn + 1 e gn com coeficientes inteiros. Então, cada gn é um múltiplo inteiro de y. Além disso, resulta da afirmação 2 que cada gn é maior do que 0 (e consequentemente que gn ≥ |y|) se n é grande o bastante e que a sequência de todas as gn's converge para 0. Mas uma sequência de números maiores ou iguais a |y| não pode convergir para 0.
Como f1/2(π/4) = cos(π/2) = 0, resulta da afirmação 3 que π2/16 é irracional e que portanto π é irracional.
Por outro lado, como outra consequência da afirmação 3 é que, se x ∈ Q\{0}, então tan x é irracional.
A prova de Laczkovich é, realmente sobre a função hipergeométrica. De fato, fk(x) = 0F1(k; −x2) e Gauss encontrou uma expansão em frações contínuas da função hipergeométrica usando sua equação funcional.[11] Isto permitiu que Laczkovich encontrasse uma nova prova mais simples para o fato de que a função tangente tem a expansão em frações contínuas que Lambert havia descoberto.
O resultado de Laczkovich também pode ser expresso em funções de Bessel do primeiro tipo Jν(x). De fato, Γ(k)Jk − 1(2x) = xk − 1fk(x). Então o resultado de Laczkovich é equivalente a: Se x ≠ 0 e se x2 é racional, então
Ver também
[editar | editar código-fonte]Referências
- ↑ Lindemann, Ferdinand von (2004) [1882], «Ueber die Zahl π», in: Berggren, Lennart; Borwein, Jonathan M.; Borwein, Peter B., Pi, a source book, ISBN 0-387-20571-3 3rd ed. , New York: Springer-Verlag, pp. 194–225
- ↑ Lambert, Johann Heinrich (2004) [1768], «Mémoire sur quelques propriétés remarquables des quantités transcendantes circulaires et logarithmiques», in: Berggren, Lennart; Borwein, Jonathan M.; Borwein, Peter B., Pi, a source book, ISBN 0-387-20571-3 3rd ed. , New York: Springer-Verlag, pp. 129–140
- ↑ a b Hermite, Charles (1873), «Extrait d'une lettre de Monsieur Ch. Hermite à Monsieur Paul Gordan», Journal für die reine und angewandte Mathematik (em francês), 76, pp. 303–311
- ↑ Hermite, Charles (1873), «Extrait d'une lettre de Mr. Ch. Hermite à Mr. Carl Borchardt», Journal für die reine und angewandte Mathematik (em francês), 76, pp. 342–344
- ↑ Hermite, Charles (1912) [1873], «Sur la fonction exponentielle», in: Picard, Émile, Œuvres de Charles Hermite (em francês), III, Gauthier-Villars, pp. 150–181
- ↑ a b Zhou, Li (2011), «Irrationality proofs à la Hermite», Math. Gazette (November), arXiv:0911.1929
- ↑ Jeffreys, Harold (1973), Scientific Inference, ISBN 0-521-08446-6 3rd ed. , Cambridge University Press, p. 268
- ↑ Niven, Ivan (1947), «A simple proof that π is irrational» (PDF), Bulletin of the American Mathematical Society, 53 (6), p. 509
- ↑ Bourbaki, Nicolas (1949), Fonctions d'une variable réelle, chap. I–II–III, Actualités Scientifiques et Industrielles (em francês), 1074, Hermann, pp. 137–138
- ↑ Laczkovich, Miklós (1997), «On Lambert's proof of the irrationality of π», American Mathematical Monthly, 104 (5), pp. 439–443, JSTOR 2974737
- ↑ Gauss, Carl Friedrich (1811–1813), «Disquisitiones generales circa seriem infinitam», Commentationes Societatis Regiae Scientiarum Gottingensis recentiores (em latim), 2