Filosofia asteca
A filosofia asteca era uma escola de filosofia que se desenvolveu a partir da cultura asteca. Os astecas tinham uma escola de filosofia bem desenvolvida, talvez a mais desenvolvida nas Américas e, de muitas maneiras, comparável à filosofia grega antiga, acumulando até mais textos do que os gregos antigos.[1] A filosofia asteca focava no dualismo, monismo e estética, e os filósofos astecas tentaram responder à principal questão filosófica asteca de como obter estabilidade e equilíbrio em um mundo efêmero. Os estudiosos reconhecidos por proporem sistematizações de uma filosofia asteca são Miguel Léon-Portilla e, mais recentemente, James Maffie.
Conceitos
[editar | editar código-fonte]Segundo James Maffie, os filósofos astecas (tlamatimine, singular: tlamatini, que se traduz como "aquele que sabe algo") não subdividiam a filosofia em disciplinas distintas, no entanto é possível identificar os conceitos principais, como a metafísica, epistemologia, ética e estética, que se inter-relacionavam como um todo que se expressa por meio da poesia, da pintura e da música (em asteca: in xochitl in cuicatl, literalmente, "as flores e as canções").[2]
A filosofia asteca via o conceito de Ometeotl como uma unidade subjacente ao universo. Ometeotl forma, molda e é tudo. Até as coisas em oposição - luz e escuridão, vida e morte - eram vistas como expressões da mesma unidade, Ometeotl. A crença em uma unidade com expressões dualistas se compara a ideias monistas dialéticas semelhantes nas filosofias ocidentais e orientais.[2]
Relação com a religião asteca
[editar | editar código-fonte]Os sacerdotes astecas tinham uma visão provavelmente panteísta,[2][3] "panteísta dinâmica"[4] ou panenteísta[5] da religião, mas a religião asteca popular mantinha o politeísmo. Os sacerdotes viam os diferentes deuses como aspectos da unidade singular e transcendente de Teotl, mas as massas eram autorizadas a praticar o politeísmo sem entender a verdadeira natureza unificada de seus deuses astecas.[2]
Metafísica
[editar | editar código-fonte]No cerne da filosofia asteca está um monismo dinâmico. Há um único princípio simultaneamente imanente, no sentido de que se manifesta em todos os fenômenos, e transcendente, no sentido de que não está inteiramente contido em nenhum deles. É uma energia sagrada de essência dinâmica que se regenera e gera o cosmos eternamente; os nahuas chamavam-no de teotl. O cosmos não é criado e não pode ser distinguido de teotl, é sua autotransformação; teotl não é nem ser nem não-ser, mas abrange o devir. Essa dinâmica confere uma dimensão dualista à filosofia asteca; as dicotomias ser/não-ser, ordem/desordem, luz/escuridão, pessoal/impessoal, animado/inanimado, vida/morte, masculino/feminino são facetas opostas de teotl que se seguem eternamente e que transcendem em uma dialética dualista. Essa dualidade é expressa na teologia asteca pela divisão de Ometeotl, uma espécie de entidade imaterial suprema, nas divindades Ometecuhtli, que representa a essência masculina da criação, e Omecihuatl, que representa a essência feminina. A mente humana, entretanto, só pode apreender teotl por meio da miríade de seus aspectos, personificados pelos deuses do panteão asteca e manifestados em particular no Ixiptla.[2][3]
Para os tlamatimines, o espaço e o tempo formam um continuum inseparável que é a manifestação do desdobramento dinâmico do teotl. As quatro direções cardeais, por exemplo, são simultaneamente as direções do espaço e do tempo. Isso explica a importância da astronomia e do calendário para os astecas. Os ciclos do calendário governam a existência humana. A data de nascimento de uma pessoa no tonalpohualli determina seu tonalli. A existência terrena é uma série de imagens e símbolos pintados e escritos por Teotl em seu amoxtli (livro) sagrado. O mundo terreno é caracterizado em analogia pelo tlamatine Aquiauhtzin (c. 1430–c. 1500) como "a casa de pinturas", o que é também visto no verso de Xayacamach: "Sua casa é aqui, no meio das pinturas". O famoso tlamatine e governante de Texcoco, Nezahualcoyotl (1402–1472), cantou:
Com flores pintas, ó Doador da Vida!Com canções dás cor, com canções dás vida na terra.
Mais tarde destruirás águias e tigres: vivemos apenas em Tua pintura aqui, na terra.
Com tinta preta Tu apagarás tudo o que era amizade, fraternidade, nobreza.
Dás sombreamento àqueles que viverão na terra ...
vivemos apenas em Teu livro de pinturas, aqui na terra.
Epistemologia
[editar | editar código-fonte]Utilizando-se de analogias vegetais e agrícolas, o conhecimento verdadeiro é descrito em termos de "florescimento" quando o coração está bem enraizado em teotl. O coração (yollotl) é considerado a fonte de teyolia, a força vital que move em anseio de plenitude ao enraizamento de teotl, e simboliza um meio termo de equilíbrio entre a razão vista como localizada na "cabeça" e a paixão como residindo no "fígado". Pelo contrário, a cognição ilusória e a ignorância estão desenraizadas (ahnelli), falhando em florescer, e representam "máscaras e disfarces" de teotl de forma inautêntica, perversa e doentia.[2]
Os tlamatimines eram vistos como os únicos qualificados para cultivar a sabedoria. Em seu papel de modelo educativo e moral, como "professor das faces das pessoas" (teixtlamachtiani), o sábio era considerado um modelador do rosto "informe" das crianças, ainda sem "face", para que adquirisse "face e coração" humanamente autêntico, e apresentava a essência genuína da pessoa como em espelho. Assim, está escrito em um poema nahua:[2]
"O sábio: uma luz, uma tocha, uma tocha robusta que não fumega.
Um espelho perfurado, um espelho perfurado em ambos os lados.
Suas são a tinta preta e vermelha, seus são os manuscritos iluminados, ele estuda os manuscritos iluminados.
Ele próprio é escrita e sabedoria.
Ele é o caminho, o verdadeiro caminho para os outros.
Ele dirige pessoas e coisas; ele é um guia nos assuntos humanos.
Mestre da verdade, ele nunca cessa de advertir.
Ele torna sábio o semblante dos outros; para eles dá um rosto; ele os leva a desenvolvê-lo.
Ele abre seus ouvidos; ele os ilumina.
Ele põe um espelho diante dos outros, torna-os prudentes, cautelosos; ele faz com que uma face neles apareça.
Ele cuida das coisas; ele regula seu caminho, ele organiza e comanda.
Ele aplica sua luz ao mundo.
Graças a ele as pessoas humanizam sua vontade e recebem uma educação estrita."
Crenças morais e estética
[editar | editar código-fonte]Filósofos astecas focavam na moralidade como estabelecer equilíbrio. O mundo era visto como constantemente se transformando com o teotl em constante mudança. A moralidade se concentrava em encontrar o caminho para uma vida equilibrada, o que proporcionaria estabilidade no mundo em mudança. A ética asteca considera o equilíbrio e a pureza como o estado ideal, com valor intrínseco, pelo qual os seres humanos devem se esforçar, teotl sendo a fonte final desse valor intrínseco, uma vez que equilíbrio e pureza são atributos dele. A ética asteca chama de conduta moralmente justa in quallotl in yecyotl, ou seja, o que é "apropriado" e "assimilável" pelos humanos no sentido de que contribui para seu equilíbrio e pureza. A forma mais segura e sábia de o conseguir é a moderação.[2]
A filosofia asteca via as artes como uma maneira de expressar a verdadeira natureza do teotl. A arte era considerada boa se, de alguma maneira, trouxesse uma melhor compreensão do teotl. Segundo Maffie, para os astecas "aquilo que é esteticamente valioso (ou belo) também é moralmente valioso e epistemologicamente valioso (e vice-versa). É o bem enraizado, bem equilibrado, verdadeiro, revelador e puro. Aquilo que é esteticamente sem valor (ou feio) é desordenado, dúbio, perverso, desequilibrado, impuro e enganoso, visto que não tem raízes, não revela, não é autêntico e é falso."[2]
A poesia asteca estava intimamente ligada à filosofia e frequentemente era usada para expressar conceitos filosóficos.[6][4][7] Abaixo está um exemplo de um poema, traduzido do original Nahuatl:
Ninguém vem à esta terra para ficar
Nossos corpos são como roseiras -
Elas fazem crescer pétalas e então murcham e morrem.
Mas nossos corações são como grama na primavera,
Eles subsistem vivos e para sempre crescem verdes novamente.
Nos poemas, um tema comum é representar a poesia com a imagem musical e estética dos termos "flor e canto", ofertando-a como uma forma imortalizada de se viver, relacionada ao alcance do verdadeiro, estável e equilibrado.[4][7] Frequentemente, os versos apresentam as palavras de flores, plumas, joias e canções. Em algumas poesias, uma realidade absoluta metafísica é inquirida, buscando-se o fundamento da verdade acima do mundo de mudanças e parecendo situá-la numa divindade que é chamada de "Doador da Vida" (Ipalnemohuani), como em: "Assim fala Ayocuan Cuetzpaltzin, que certamente conhecia o Doador da Vida ... Ali ouço sua palavra, certamente dele, ao Doador da Vida responde o pássaro cascavel. Anda cantando, oferece flores, oferece flores. Como esmeraldas e plumas de quetzal, estão chovendo suas palavras. Lá se satisfaz talvez o Doador da Vida? É este o único verdadeiro sobre a terra?" e "Tu, somente, mostras-te inexorável, Doador da vida".[4]
Um dos mais conhecidos nomes é o do rei Nezahualcóyotl, também poeta e tlamatine, a quem se atribui:[7]
"Tudo o que é real,Tudo o que está enraizado,
Dizem que não é real,
Não está enraizado.
Somente o Doador da Vida
Aparece absoluto.
Que nossos corações não sejam atormentados.
Porque Ele é o Doador da Vida."
Textos
[editar | editar código-fonte]Existe uma escassez de material a partir do qual a filosofia asteca pode ser estudada, com a maioria dos textos existentes escritos após a conquista por colonos e missionários espanhóis ou por nativos educados em espanhol cristianizados. As fontes pré-conquista incluem o Códice Borgia e o Codex Borbonicus (escritos sobre a época da conquista). Os textos pós-conquista incluem o Codex Florentino, o Códice Mendoza e o Códice Magliabechiano, incluindo outros.[2]
Ver também
[editar | editar código-fonte]Referências
- ↑ Mann, Charles C. (2005). 1491: New Revelations of the Americas Before Columbus. Nova Iorque: Alfred A. Knopf. p. 121.
- ↑ a b c d e f g h i j Maffie, James. «Aztec Philosophy». Internet Encyclopedia of Philosophy
- ↑ a b Maffie, James (15 de março de 2014). Aztec Philosophy: Understanding a World in Motion (em inglês). [S.l.]: University Press of Colorado. ISBN 978-1-60732-223-8
- ↑ a b c d Portilla, Miguel León (2006). La filosofía náhuatl: estudiada en sus fuentes (em espanhol). [S.l.]: UNAM. ISBN 978-970-32-3176-8
- ↑ Rodríguez, Juan Camilo Hernández (julho–dezembro de 2019). «El Ometeotl: La Dualidad como Fundamento Metafísico Trascendental» (PDF). Perseitas. 7 (2)
- ↑ Mann, 122-123
- ↑ a b c Leon-Portilla, Miguel (1992). Fifteen Poets of the Aztec World (em inglês). [S.l.]: University of Oklahoma Press. ISBN 978-0-8061-3291-4
Bibliografia
[editar | editar código-fonte]- Maffie, James; Aztec Philosophy: Understanding a World in Motion; 2014: NDPReview.
- Leon-Portilla, Miguel; Native Mesoamerican Spirituality; Jun 27 2002.
- Leon-Portilla, Miguel; Aztec Thought and Culture: A Study of the Ancient Nahuatl Mind; 1990.
- Leon-Portilla, Miguel; Fifteen Poets of the Aztec World; October 15, 2000.