"Imagine o que é andar pelo mundo e todas as caras representarem uma ameaça para si, até a cara da sua própria mãe." Foi assim que Richard Davidson, investigador da Universidade de Wisconsin, EUA, resumiu, em poucas palavras um dos problemas principais do autismo: as deficiências na interacção social e comunicação.
Luísa André, 46 anos, sabe que o académico tinha razão: "Até o meu tom de voz pode ser uma ameaça", diz. Tem dois filhos autistas, Francisco, de 13 anos, e Alexandre, de 15. Alexandre não fala e tem uma deficiência mental profunda mas, ao contrário do irmão, não foge do contacto físico.
Todos os dias, Luísa tem uma batalha nova, seja para lhes dar mais autonomia nas acções do dia-a-dia - como ir à casa de banho sozinho ou comer - ou a lutar contra a incompreensão social. Quem não conhece crianças autistas, pode facilmente tomá-los por mal-educados. "Às vezes ficam umas clareiras de gente à nossa volta, quando o Francisco dá um grito num sítio onde está muita gente e muito barulho, porque tem hipersensibilidade aos sons. As pessoas assustam-se e fogem." Hoje, esta enfermeira divorciada vive sozinha com os filhos. Os seus pais são o seu braço direito nesta tarefa.
"Em dois meses, ele deixou de falar"
"Notei que havia algo errado com o Alexandre quando ele tinha pouco mais de dois anos, estava eu no final da gravidez do Francisco, mas pensei que não estivesse a lidar bem com a vinda do irmão", recorda Luísa. "Em dois meses deixou de falar (já dizia algumas palavras e pequena frases), de comer sozinho, de usar a casa de banho sem ajuda e passou a isolar-se. A última palavra que disse foi ‘água'. Só voltou a falar aos seis anos: segurou-me na cara, olhou para mim e disse ‘mãe'. Valeu por todas as palavras que me pudesse ter dito."
Apesar de tanto ela como o ex-marido serem profissionais de saúde, não suspeitaram do verdadeiro diagnóstico. Foi a insistência da família que os convenceu a procurar um especialista. "Na primeira consulta o diagnóstico foi brutal. Chegámos cá fora, chorámos e eu disse: ‘vamos comprar material educativo'", recorda. Com o Francisco, as coisas foram diferentes. "O desenvolvimento foi mais lento. Não me lembro dele sorrir em bebé, por exemplo. A confirmação do diagnóstico só aconteceu aos quatro anos mas, desde o início, o meu sexto sentido dizia-me que as probabilidades dele também ser autista eram grandes. Foi difícil ter de dizer ao mundo que tinha um segundo filho deficiente. Achei que a maior parte de mim olhava para mim como aquele ar de ‘coitada!' Não posso aceitar que a deficiência dos meus filhos seja um factor negativo na minha vida."
Muitos pais isolam-se, por causa da dor e da maior necessidade de protecção dos seus filhos face ao exterior. "Começamos a perceber que, o mundo à volta deles, de maneira nenhuma aceita esta diferença enorme que é o autismo. Deixei de ir a casa dos meus amigos porque não estava para me sujeitar a ouvir uma ‘boca' ou que as outras crianças gozassem com eles. Acabei por me isolar um bocado. É uma situação que ainda hoje me acompanha um pouco."
"Comunicamos com os olhos e o coração"
Os prognósticos dos médicos, especialmente em relação ao Alexandre, não quebraram o espírito de luta desta mãe. Ao contrário do que disseram os especialistas, o Alexandre largou as fraldas e aprendeu outras competências, como manusear um rato de computador. "Ninguém está preparado para ter um filho autista. Leva algum tempo a fazer o luto pelo filho que esperávamos vir a ter e adaptarmo-nos à nova realidade", observa Luísa. "Hoje, vivo melhor com a ideia de que ele não irá falar. Mas o sorriso dele, a forma como me beija ou abraça são, para mim, equivalentes a enormes conversas. Um filho autista obriga-nos a comunicar com os olhos e o coração. Os meus filhos são uma lição de vida para mim: dão a possibilidade de me confrontar, todos os dias, com gente diferente e de me tornar uma pessoa melhor."
Luísa, que também é membro da Direcção da Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo (APPDA), sabe que, quando os filhos forem adultos, continuarão a ser dependentes e essa é sua maior dor e preocupação. "Por muito que as instituições façam, pelo bem-estar destas crianças, como podem elas ter em consideração todas as necessidades especiais que os meus filhos têm, e que são diferentes de um para o outro?"
Afinal, o que é o autismo?
O autismo é definido como uma perturbação do desenvolvimento infantil, que se prolonga por toda a vida. Embora a maioria sofra de algum grau de atraso cognitivo, existem indivíduos com quocientes de inteligência elevados - situação que se repete no Síndroma de Asperger, perturbação da família do autismo, em que a parte intelectual não está comprometida.
Os autistas batem-se com problemas de comunicação e linguagem (estima-se que 50% não cheguem a falar), interacção social, pensamento e comportamento. A criança autista tem uma tendência marcada para se isolar ou interagir de forma desadequada. Prefere o silêncio e quando comunica, não o faz de uma maneira empática ou afectiva: não fala ‘com' alguém, mas ‘para' alguém, sobre as suas necessidades imediatas, por exemplo. Gosta de rotinas e repetições, resiste à mudança - um corte de cabelo novo ou uma mudança de itinerário no caminho para casa podem ser problemáticos. Não consegue usar os jogos de faz-de-conta, a imaginação. Muitos têm hipersensibilidade aos estímulos sensoriais, como sons fortes, texturas, gostos - o que pode acarretar grandes dificuldades de alimentação. Muitos autistas têm uma excelente capacidade para memorizar mecanicamente.
Uma em cada mil crianças nasce com autismo, segundo um estudo canadiano de 2003 levado a cabo no Canadá. Em Portugal, os números são idênticos (dados de 2006). Existem quatro e cinco rapazes afectados por cada rapariga.
Na Síndrome de Asperger o número sobe para oito rapazes para cada menina. As causas para ambas as perturbações não estão totalmente esclarecidas, mas sabe-se que existe uma forte predisposição genética. Pensa-se que alguns factores pré-natais - doenças como a rubéola materna ou o hipertiroidismo - e pós-parto - prematuridade do bebé, baixo peso ao nascer, traumatismo no parto, infecções neo-natais graves possam também ter alguma influência. Segundo a APPDA, o número de casos aumentou nos últimos 20 anos, o que significa que a razão pode não se ficar pelos genes.
"Asperger: Não está na cara, mas existe"
Quando o Nuno era bebé, a sua rigidez muscular despertava alguma preocupação à mãe, Piedade. "Mudar as fraldas era um castigo. Mas era muito calmo, quase não chorava, um ‘come e dorme'. Era justamente isso que me preocupava. Quando estava a aprender a falar, e não conseguia verbalizar correctamente, mordia-se e flagelava-se."
Aos dois anos e meio, diagnosticaram-lhe um pequeno défice cognitivo, mas só sete anos depois surgiu o diagnóstico que lhe apontava características de Síndroma de Asperger (SA). "O Nuno não é um Asperger puro; também tem características de um autista de alta funcionalidade." Piedade bateu-se imediatamente por uma terapeuta da fala, que acompanhou o filho dos 3 aos 9 anos, e nunca se rendeu a diagnósticos redutores. "Foi um choque mas, talvez pelo facto de ter católica, nasceu-me uma força que me convenceu de que não ia ser isto que me iria derrotar. No princípio, o que mais me custou foi não saber como fazer respeitar o meu filho e adquirir esta força, que vamos dando um ao outro, para ultrapassarmos as dificuldades dele. Partia para as batalhas preparada com todos os argumentos e não valia a pena dizerem-me que não", diz esta mãe, que é casada e tem mais uma filha de 19 anos.
Hoje o Nuno acompanha as aulas do 7.º ano e Piedade é a mentora da Associação Portuguesa de Síndrome de Asperger (APSA). Com 250 associados em todo o país, faz este mês cinco anos. "A APSA nasceu com o intuito de explicar e desdramatizar a SA, que é a forma mais ténue no longo espectro do autismo. O Asperger não está na cara, mas existe. Estes são os meninos que, à partida, consideramos mal-educados, cabeças no ar, os que estão sozinhos no recreio, que não gostam de actividades físicas, os meninos à margem."
A SA diferencia-se do autismo porque não existe atraso no desenvolvimento cognitivo e linguagem. Mas os aspies, como são carinhosamente conhecidos, partilham algumas das dificuldades de comunicação e interacção social dos autistas: uma marcada tendência para o isolamento, o gosto por repetições e rituais rígidos; boa capacidade de memorização mecânica, dificuldade em estabelecer uma comunicação baseada na empatia, em entender linguagem não verbal ou metáforas, apesar do uso da linguagem ser correcto. Os aspies demonstram, também, movimentos desastrados e fixação em cheiros e texturas de objectos. "Costuma dizer-se que aprendem a falar antes de andar, enquanto os autistas aprendem a andar antes de falar", disse Glenis Benson, especialista norte-americana em desordens do espectro do autismo, num seminário promovido a 19 de Setembro, em Lisboa, pela APSA. Por tudo isto, o diagnóstico é mais tardio; geralmente, dá-se quando as crianças já estão na escola primária.
Escolas especiais ou regulares?
As crianças autistas não têm necessariamente de frequentar escolas de ensino especial. Os filhos de Luísa André estão integrados no ensino regular - Alexandre há oito anos, com uma passagem de um ano por um estabelecimento de ensino especial. Luísa pondera os prós e os contras: "Na escola especial eles estariam mais protegidos mas é-lhes roubada a vantagem de conviverem com crianças sem deficiência. E os meus filhos também representam uma experiência fantástica para a escola, em termos de aprendizagem de cidadania para as outras crianças. Por outro lado, a escola pública não tem muitos recursos necessários para ensinar aos autistas competências básicas, como a autonomia nas acções do dia-a-dia."
O ensino público tem escolas de referência para autistas e Aspergers. Na escola de Francisco e Alexandre há mais sete crianças autistas e outras sete com Síndroma de Asperger. Ambos estão integrados em turmas regulares, mas estudam numa sala separada e partilham uma aula por semana com os seus colegas não deficientes - a de educação física. Não acompanham o programa escolar dos seus colegas mas transitam de ano com eles - não se espera que tenham o mesmo rendimento escolar mas que interajam.
Do outro lado do espectro autista, a APSA promove acções de sensibilização nas escolas - o ‘Projecto Gaivota' - para ajudar colegas e professores a lidar e comunicar com os alunos aspies. "Há pais que não querem nem que sonhe com o facto dos filhos terem esta síndrome", diz Piedade Monteiro..
É raro que estas crianças venham a encontrar uma profissão, devido aos seus problemas de comunicação e sociabilização, "mas se trabalharem naquilo que gostam são os melhores funcionários", observa Piedade. "Há um trabalho enorme a ser feito com toda a sociedade. É preciso bater às portas de empresas e da consciência social." Um dos projectos da APSA é a criação de ateliês que possam servir de pólo de formação profissional e geradores de empregos para os jovens com Asperger. As parcerias com as empresas seriam parte do processo. "Em vez de massacrarmos os nossos filhos com as notas, a física e a matemática, devemos acautelar o seu bem-estar pessoal e social."
Autismo: Primeiros sinais
Apesar de ser difícil diagnosticá-lo antes dos dois ou três anos, há características comuns a muitos bebés autistas, descritas no site da Associação Portuguesa de Perturbações do Desenvolvimento e Autismo. No entanto, cada criança é um caso.
- Pode demonstrar indiferença pelas pessoas, ambiente ou medo de objectos.
- Problemas de alimentação e de sono.
- Pode chorar muito sem razão aparente ou, pelo contrário, nunca chorar.
- Repetição de movimentos, quando começa a gatinhar: bater palmas, rodar objectos, mover a cabeça de um lado para o outro.
- Ao brincar, não consegue usar o jogo de faz de conta. Não interage com os outros e pode não saber responder aos desafios ou brincadeiras.
- Não utiliza os brinquedos na sua função própria. Um carro pode ser um instrumento de arremesso.