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Acidentalismo

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Em filosofia, o acidentalismo é uma doutrina segundo a qual o real se reduz a uma simples pluralidade de acidentes.[1]

O acidentalismo, enquanto ideia filosófica teve diversas abordagens ao longo da história. Muito usado como um sistema de pensamento que nega o nexo causal e defende que os acontecimentos se sucedem ao acaso ou por acaso (não no sentido estatístico, mas no sentido comum).

Na metafísica, o acidentalismo nega a doutrina de que tudo o que acontece resulta de uma causa definida. Neste contexto, é sinónimo de tiquismo (τύχη, acaso), um termo usado por Charles Sanders Peirce - o 'pai' do pragmatismo - para as teorias que fazem do puro acaso um factor objectivo e determinante no processo do Universo. Acaso, segundo Peirce, significa “ausência das causas, quebra de lei, espaços vazios na gramaticalidade do cosmos, ruídos na cadeia redundante dos fenômenos.”[2]

A frase «a essência do homem está na sua existência» é interpretada, na filosofia de Jean-Paul Sartre, de forma inversa à de Heidegger: como acidentalismo, construtivismo da essência, sempre incompleta, esboçada, através da acção objectiva. Para Sartre, a essência do homem não existe a priori, nasce da acção. Mas, para Heidegger, a essência do homem existe a priori, nasce, não da acção mas do "ser" transcendental e, obviamente, tempera-se e consolida-se na acção. Por isso, existencialismo, em Heidegger, é essencialismo. E em Sartre, é acidentalismo, libertismo." [3]

Richard Shweder, numa crónica para o jornal New York Times, afirmava: "A antítese do essencialismo pode ser chamada de acidentalismo. Os acidentalistas acreditam que a única diferença natural entre homens e mulheres é o sexo (o peniano versus o vulvar, como diria o senhor Stoltenberg). Todo o resto é gênero e, quando se trata de gênero, tudo fica artificial. Segundo os acidentalistas, a tipificação sexual das tarefas, dos gostos e talentos não é natural, manifesta ou dada por força divina. As definições do que significa ser um homem (ou uma mulher) mudam. Para o acidentalista realmente supercomprometido, gênero é coisa superficial. Esperemos que em algum lugar a meio caminho entre o essencialismo e o acidentalismo haja algum senso comum."[4]

O acidentalismo defende que as acções e todos os movimentos cósmicos existenciais são derivados do acto de ESTAR e não do SER. Tudo acontece porque estamos e não porque existimos.

Essencialmente, o acidentalismo busca a compreensão da realidade para o facto de que acções, eventos ou ideias possam ocorrer sem parecerem um resultado de algum factor já perceptível ou reconhecido. Ao afastar-se do nexo causal e reconhecendo que os eventos podem e, por vezes, parecem ter lugar de nada mais do que o puro acaso, o conceito tenta fornecer um nome para estes tipos de eventos fortuitos: Acidentalismo.

O Acidentalismo como corrente artística

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O termo Acidentalismo designa também um conceito estético nascido duma corrente artística envolvendo as artes plásticas, música, cinema, performance e literatura.

Apesar de pequenos ensaios no final dos anos 1980 e a década de 1990, este conceito foi oficialmente registado em 2000 pelo músico-pintor Victor Torpedo, durante a primeira fase da banda punk-rock The Parkinsons (band), sediada em Londres, Inglaterra, e da qual Victor foi fundador e guitarrista. Um outro elemento fundador, o baixista Pedro Chau, teve um papel decisivo na divulgação do conceito – na altura, ainda embrionário. Victor Torpedo e Jay Rachsteiner (a dupla de pintores Sardine&Tobleroni) foram os primeiros artistas de renome mundial a declararem-se abertamente acidentalistas, admitindo que o conceito de Acidentalismo teve reflexos significativos tanto na estética das suas obras, bem como na forma de as conceber. Nesta sequência, em 2008, organizam em Portugal a exposição «Espelho Meu – História do Rock Português em 38 Pinturas», na qual retratam artistas da música moderna portuguesa desde a década de 1950 até à atualidade. Esta série de obras plásticas foi comissariada por Paulo Branco Lima, tendo sido exibida pela primeira vez no espaço lisboeta Santiago Alquimista, num evento que contou com a atuação da banda Pop Dell'Arte. Posteriormente, a exposição transitou para a Fábrica de Braço de Prata e Plano B, no Porto. A inauguração desta coleção de pinturas de Sardine&Tobleroni foi acompanhada de um texto curatorial de Paulo Branco Lima em forma poética, intitulado «A Força Cromática do Acidentalismo», uma abordagem que postulou o nascimento do Acidentalismo como movimento artístico e que é considerada, de forma unânime, pioneira do Manifesto Acidentalista (o texto foi publicado 14 anos depois num opúsculo poético da Cadornel Edições denominado «Fenómeno: metáforas – sensações»).

No cinema, o Acidentalismo é abordado pela primeira vez também em 2008, pelo belga Kamagurka (Luc Zeebroek, n. 1956), cartoonista, dramaturgo, pintor, humorista, cantor cómico e produtor de televisão, conhecido pela natureza absurda da sua obra, que culmina e triunfa no Acidentalismo. Em 2008 Kamagurka faz um projecto artístico chamado "Kamalmanak". A ideia assenta no princípio de fazer uma pintura para cada dia , em 2008 – que é um ano bissexto – para que no final resultem 366 pinturas. O projecto é patrocinado pelo empresário Marc Coucke, membro do conselho de administração da empresa Omega Pharma. Coucke, um apaixonado pela arte, sempre assumiu grande admiração pela arte de Luc Zeebroek. Durante o projeto Kamalmanak, Kamagurka começou a fazer curtas-metragens para o canal digital holandês NRC TV. Enquanto filmava um desses curtas-metragens, Luc Zeebroek assume o movimento artístico Acidentalista. Mais tarde, e na pintura, começa a pintar uma série de retratos acidentalistas. Kamagurka pinta um retrato de alguém que surge dentro da sua mente. De seguida, divulga este retrato na televisão, jornais e internet, com as seguintes perguntas: "Esta pessoa é você?" ou " Você conhece alguém que se parece com este retrato?" Se alguma pessoa se assemelha ao retrato pintado por acidente da imaginação de Kamagurka, pode enviar uma foto. A pessoa que mais se assemelha ao retrato pintado pelo artista é depois oficialmente reconhecida pelo mesmo. É assim que funciona o Acidentalismo para Luc Zeebroek.[5][6]

Alguns anos mais tarde, já por volta de 2010, o conceito ganhou contornos oficiais na cidade de Coimbra, em Portugal, tendo sido rejuvenescido pelo músico Bruno Pedro Simões (músico da banda Sean Riley & The Slowriders) e pelo actor e escritor Paulo Branco Lima. Os dois lançaram o Manifesto Acidentalista, onde as ideias-chave do conceito são descritas e apresentadas publicamente: a aleatoriedade e teoria do caos controlam todos os aspectos sonoros e textuais do processo criativo, os múltiplos parâmetros de efeitos diegéticos e/ou fragmentários, e até mesmo a estrutura melódica e harmónica de cada trabalho, resultando em sons e composições de verso livre irreversíveis, massas de energia produzidas uma única vez e impossíveis de reproduzir matematicamente uma segunda vez.

Duas figuras ligadas ao eixo cultural Londres-Coimbra, o ensaísta Luís Peres e o músico Pedro Calhau (Bunnyranch), foram associados ao Acidentalismo em vários momentos das suas vidas, nomeadamente através das performances espontâneas «Curva da Banana Forever» ou também «Querida p#ça, faz-te à vida!». Estas duas intervenções foram consideradas "acidentalismo puro" por Bruno Pedro Simões e Paulo Branco Lima, que já aplicavam o Acidentalismo desde 1994 na grupo Tu Metes Nojo (banda), um híbrido de teatro, música e performance Hard-Nojo. Apenas em 2010 – e com a criação do Manifesto Acidentalista – é que Bruno Pedro Simões e Paulo Branco Lima assumem o estatuto "acidentalista" nas suas actividades artísticas.

Já em 2013, o autor Paulo Branco Lima (escritor) admite publicamente que a sua obra "Origem e Ruína" e o seu estilo de narrativa cíclica é fruto de um "puro acidentalismo". Neste contexto, Paulo Branco Lima desenvolve com Miguel Pais Pinto uma peça teatral baseada nos conceitos do Acidentalismo, intitulada «Uma Lição de Literatura», onde apresenta o seu livro "Origem e Ruína" através de um par de personagens antagónicas – o encontro insólito entre “um artista de esquerda em crise de meia idade, e um tipo que tem a mania que é um génio e anda sempre vestido com calças do Benfica".

O Acidentalismo, enquanto fenómeno e corrente artística começa a absorver vários artistas em simultâneo e espontaneamente, como é o caso do músico electrónico e artista multimédia, Computo (Joe Caputo). Computo é um compositor de música electrónica / performer sediado em Los Angeles , CA. Utiliza software – incluindo programas que ele mesmo projecta – onde incorpora todos os tipos de tecnologia analógica e digital. Computo afirma que "nasceu das cinzas de um terrível acidente", enfatizando que Computo não é mais homem do que Joe Caputo é uma máquina. Depois de uma digressão europeia e de ter tocado com lendas do jazz como Wynton Marsalis e do baterista Kenwood Dennard, na fatídica noite do acidente, Joe estava em casa, a dormir sob as torres monolíticas do seu equipamentos de estúdio. De alguma forma as torres caíram, esmagando Joe sob quase uma tonelada de produtos e componentes electrónicos. Após esse acidente, Joe torna-se mais máquina do que homem, tendo no lugar da sua cabeça um monitor de computador permanentemente fundido ao seu corpo. Na neblina do acidente, Computo começa compulsivamente a sua construção electrónica. Constrói uma série de instrumentos, incluindo o Guitum (um instrumento de percussão electrónico programável e trabalhado a partir de uma velha guitarra). A 23 de março de 2010, edita a sua grande obra acidental:Computo - Accidentalism[7]

No epicentro do Acidentalismo, a cidade de Coimbra, Portugal, vive momentos de grande agitação, gerando vários eventos acidentalistas e abrangendo as mais variadas formas de expressão artística, tendo Pedro Chau, Bruno Pedro Simões e Paulo Branco Lima um papel preponderante na sua divulgação. Exemplo disso são as "Noites Acidentalistas" que Bruno Pedro Simões e Pedro Chau realizam com regularidade no clube acidentalista "Useless Club" e os Subway Riders de Carlos Dias (Carlos Subway), que, embora nunca se assumindo como acidentalista, trabalha com Victor Torpedo (aqui sob o nome Victor Subway) desde o final dos anos 80.

Em 2014, o Acidentalismo começa a espalhar-se por Portugal enquanto corrente artística e forma não estruturada de visualizar qualquer evento. Neste contexto, em Almada (Portugal), Rodrigo Dimas assume-se como Acidentalista e cria o primeiro esboço daquilo que intitula como "o primeiro programa de rádio puramente acidental" baseado nas teoria da Pseudoaleatoriedade e defendendo que as palavras são como números no nosso cérebro e a sua escolha é estatística. Desenvolve assim o conceito de "ricochete" onde defende que a rádio na sua essência é fruto de uma aparente casualidade de sinapses cerebrais que debitam as nossas palavras de forma casual e imediata, não existindo tempo de reflexão sobre o discurso radiofónico assim que um locutor abre a via do seu microfone:

Segundo, Gerson Mário de Abreu Farias[8]: "Vale lembrar que a credibilidade conquistada, ou a tentativa de representação do real de um ponto de vista específico, não garante a verdade absoluta dos fatos, mas, para garantir a ilusão da realidade do discurso, o radialista demarcou o outro em seu espaço discursivo. A posição do sujeito e o lugar discursivo estão interligados. Na memória tanto do radialista como do ouvinte já existe um sentido, uma ideia do que está a acontecer. Assim, a utilização de elementos que usam o interdiscurso no conceito de memória discursiva efectiva um gesto de leitura em determinadas situações."

Para Orlandi[9]: "A evidência do sentido – a que faz com que uma palavra designe uma coisa – apaga o seu carácter material, isto é, faz ver como transparente aquilo que se constitui pela remissão a um conjunto de formações discursivas que funcionam com uma dominante. As palavras recebem seus sentidos de formações discursivas em suas relações. Este é o feito da determinação do interdiscurso (da memória)."

Juntamente com Bruno Pedro Simões, Rodrigo Dimas cria assim o programa radiofónico "Ricochete" assente nas premissas acidentalistas desenvolvidas em manifesto.

Após o trágico desaparecimento acidentalista do mentor Bruno Pedro Simões em 2016, a 24 de agosto (aniversário de BPS) de 2021, o continuador e dinamizador do movimento, Hélder "Grau" Santos, fundou o evento Tributo Acidentalista em homenagem ao malogrado. Ocorrendo no Grémio Operário de Coimbra, o evento revelou-se um enorme sucesso, incluindo as atuações de Tó-Rui a solo (Tu Metes...), The Grau (mega banda ultra-Acidentalista), Subway Riders, e os DJ's A Boy Named Sue, Afonso Macedo e Nuno Ávila.

Neste âmbito, desde a década de 2010, vários artistas se têm declarado abertamente acidentalistas, contribuindo para a solidificação do conceito.

MOSZCZYNSKA, JOANNA | Lisboa, 2009 |

"UM HOMEM CÉLEBRE": O Acaso Como Figura Extrema de Relação Entre Contingência e Destino"[ligação inativa]

Ligações externas

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Referências

  1. Fenomenismo[ligação inativa], por J. Barrio Gutiérrez.
  2. "Salatiel,José Renato | São Paulo 2008 | Sobre o conceito de ACASO na filosofia de Charles S. Peirce"
  3. Queiroz,Francisco Limpo de Faria | 1º de Dezembro de 2010 "A equívoca definição de «Existência» na doutrina de Heidegger.
  4. Shweder, Richard A.| 9 de Janeiro de 1994 | Crónica para o New York Times | "What Do Men Want? A Reading List For the Male Identity Crisis"
  5. "Kamagurka vraagt: Bent u dit misschien? - Entertainment - Algemeen - bndestem". Bndestem.nl.
  6. "Kamagurka in Cobramuseum - Kunst - algemeen - Gelderlander". Gelderlander.nl.
  7. Computo "Accidentalism" - Março de 2010
  8. Farias, Gerson Mario de Abreu. Linguagem e jornalismo: uma reflexão do discurso radiofonico. jan/jun., 2011 ECCOM, v. 2, n. 3 ed. [S.l.: s.n.] p. 52-65 
  9. Orlandi, Eni Pulcinelli (1987). Análise de discurso, princípios e procedimentos Pontes ed. Campinas, Brasil: Coleção Novas Buscas em Comunicação. p. (105-126)