SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

O ACENDENDOR DE VAGA-LUMES


*Rangel Alves da Costa


Não era acendedor de lamparinas ou luminárias em postes antigos não, mas acendedor de vaga-lumes. Contudo, nem todo mundo sabe acender o lustre do inseto.
Hoje está em total desuso, é ofício que não se pratica mais, mas nos tempos antigos a arte de acender vaga-lumes era uma nobre e valorosa ocupação.
E tão valorizada era a arte que os acendedores de vaga-lumes só eram encontrados entre os sábios, filósofos, aqueles mais judiciosos e prudentes.
E havia razões para ser assim: só consegue acender vaga-lumes que tem o espírito iluminado, quem consegue enxergar o dia na escuridão, quem vive buscando explicações para a realidade do mundo.
Só consegue acender vaga-lumes quem não se contenta com o dado e vive perquirindo outras respostas, quem encontra motivos para conversar e ouvir a pedra ou dialogar com as forças da natureza.
Só faz surgir a luminescência no pequeno inseto coleóptero da família Elateridae, Fengodidae ou Lampyridae aquele que não necessita de um pirilampo voando ao redor para fazê-lo fosforescer. A luz é ideia, e o vaga-lume idealiza o mundo na sua imperfeição, devendo ser aceso para proporcionar os sinais.
A luz é a consciência, o conhecimento, e o vaga-lume o próprio homem que avista aquilo pelos demais ainda em obscuridade. Uma luz de vaga-lume que significa a compreensão do real dentre as contradições e obscurantismos do mundo.
Muitas vezes, em meio ao negrume da noite, debaixo do mais tenebroso breu, o sábio chamava o seu discípulo e ensinava-lhe como encontrar a luz em momentos difíceis, como avistar uma réstia quando tudo já está desesperançado. E o discípulo começa a avistar vaga-lumes.
Outras vezes, caminhando solitário pela via escura, o filósofo encontrava pessoas que logo lhe perguntavam aonde ia assim debaixo de tamanha escuridão, onde apenas os grilos cantam nos escondidos e os vaga-lumes nem ousam aparecer. Vou acender vaga-lumes, respondia ele.
Alguns seguiam adiante dizendo da loucura encontrada, outros apenas ouviam para dizer que ali era mais fácil encontrar os seres maldosos da noite a um só vaga-lume. Mas houve alguém que se interessou pela resposta do filósofo e indagou-lhe como era possível encontrar vaga-lumes para acendê-los se ao encontrá-los logicamente já estariam piscando.
O velho filósofo logo entendeu aquela indagação e intimamente se encheu de uma felicidade indescritível. Até que enfim encontrei um vaga-lume, disse a si mesmo. Mas ao abrir a boca perguntou se a pessoa estaria disposta a ajudá-lo nessa difícil empreitada. Com a afirmação positiva, só restava dizer o que deveriam fazer.
E continuando ali mesmo, os dois em pé envoltos na escuridão, o filósofo disse: Creio que os vaga-lumes nem sempre estão piscando, nem sempre estão emitindo aquelas luzes fosforescentes. Deve haver um motivo para que continuem apagados, em repouso, como deve haver um motivo para que comecem a piscar.
E continuou. Portanto, pode haver vaga-lumes ao redor e que, por estarem em inércia, nossos olhos não conseguem enxergar. Mas mesmo que continuem assim será possível avistá-los. Se você acha que eles estão por aqui, haverá sempre uma grande possibilidade de eles estarem realmente por aqui. Mas se você tem certeza que eles estão aqui, então não demorará muito para que comecem a piscar.
E disse mais. Eis a noite do vaga-lume e a noite do homem. Tudo uma possibilidade, mas também tudo impossível, se assim desejar. O homem que teme a noite, que concebo como a realidade desconhecida, jamais encontrará vaga-lumes. Tão preguiçoso é para buscar respostas, tão inerme é para descobertas que permanecerá na escuridão diante de milhões de pirilampos incandescentes.
Então, a pessoa que permanecia ao lado ouvindo as explicações, ansiosa para dizer que talvez tivesse entendido tudo, humildemente falou: Palavras tão sábias e verdadeiras chegam a mim como luz. E só agora sei como posso iluminar a noite do medo, do desconhecimento, da incerteza. Basta seguir adiante, ter determinação e perseverança, procurando sempre a razão em tudo que possa existir, e certamente encontrarei vaga-lumes.
E depois disso os dois seguiram adiante, tão iluminados como pirilampos.


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Lá no meu sertão...


Na estrada sertaneja...






Clamor e devoção (Poesia)


Clamor e devoção


Minhas nãos trêmulas
ligeiras e ávidas procuram o rosário
meu Deus, meu Deus onde você está?

meus olhos molhados refletem
a chama da vela que brilha adiante
meu Deus, meu Deus, onde você está?

minha prece sussurrando contrita
pede e implora alguma resposta
meu Deus, meu Deus, onde você está?

de joelhos dobrados no leito do chão
caminho ao alto em busca da montanha
meu Deus, meu Deus, onde você está?

meu Deus, meu Deus, mostra tua face
a vela apagou e a noite é tão fria e triste
onde você está, onde está você?


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - uma vida


*Rangel Alves da Costa


Uma vida, apenas. Mora sozinho, vive distante de tudo, menos de seu mundo de encantamento. Não quer saber da cidade, pois acha feia, esquisita, com gente que não se entende. Não quer saber de estrada, pois diz que agora só é caminho pra moto e pra carro, não mais pra carro-de-boi, jumento e cavalo. Gosta mesmo é de seu mundo, um mundo de solidão e silêncio. É amigo do bicho do mato, da pedra, do passarinho, do vento e da ventania. Conversa com o sol, conversa com a lua. Come do que a terra dá e se enche de contentamento com o que encontra. Vive num barraco sem porta ou janela, sem cama e luz elétrica. Nem candeeiro possui. Estende sua rede debaixo do umbuzeiro e ali adormece feliz. Acorda com o canto passarinho e faz uma prece ao Deus da natureza e da vida. Depois abraça a manhã e começa o seu dia. Conhece tudo ao redor de seu mundo, desde os mistérios da natureza aos segredos mais antigos. Senta ao redor da pedra e diz bom dia. E a pedra responde: eu hei de me transformar em pó e você continua aqui de braços abertos igual a mandacaru. Não há seca que lhe dobre, não há tempo ruim que lhe quebre. Por isso mesmo que seu nome é sertão.


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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

OS RIFLES CUSPINDO FOGO


*Rangel Alves da Costa


Todos se exaurem das tratativas de tocaias e mortes. Todos se cansam das estratégias de vingança. Todos se enfadam de tantas ordens dadas e de tantas ordens recebidas. Mas os rifles não.
Os rifles têm de estar continuamente em sentinela, em vigília constante, de boca aberta e olhos atentos. Os rifles não repousam senão ao lado de mãos embrutecidas e dedos vorazes para apertar seus gatilhos.
Coronel Teovegildo diz ter suas razões para manter matadores dia e noite a seu dispor. Ou faz assim ou os inimigos chegam primeiro e fazem jorrar pelo terno de linho branco o sangue muito mais da desonra do que da morte.
Coronel Fenelon diz ter seus motivos para manter tantos jagunços e pistoleiros prontos tanto para o ataque como para a defesa. As inimizades semeadas agora tendem a vingar um mundo de revides sobre si e sua família. Todos estão jurados de morte certa.
Coronel Sá de Quaranta diz ter justificativas mais que suficientes para viver rodeado de homens ramados até os dentes. Os seus desafetos rodeiam seus latifúndios como urubus buscando carniça pra se fartar. Gaviões e carcarás povoam seus terríveis pesadelos.
Há, num mundo assim, um império de rifles, de vinditas de sangue, de desmedidas violências. Cada coronel quer, através das armas e do terror, impor-se sobre o outro a qualquer custo. É o preço do mando, da honra e do poder.
Preço do mando, da honra e do poder, mas também uma doença com feição incurável pelos latifúndios e posses das distâncias nordestinas. Males crônicos que vingam nos casarões e sobrados e se estendem pela terra tingida da vermelhidão putrefata da violência.
Os motivos? São muitos. Cabidos e descabidos, justificados e aberrantes. Mas quem há de falar em justa motivação quando o coronel quer, a todo custo, não só fazer prosperar seu império de poder como dizimar todo aquele igualmente poderoso que se mostra como pedra na botina?
Rixas históricas, confrontos quase épicos senão vergonhosos para a história a ser contada. E os livros com o dever de abrir suas páginas para situações verdadeiramente escabrosas das lutas entre coronéis e suas tropas de desalmados. Bala zunindo, os rifles sedentos de sangue, covas rasas ou carcaças deixadas pelos bicos afiados.
Na conflagração das guerras de poder e honra, não somente os coronéis são personagens principais. Os sobrenomes familiares se envolvem de tal modo nas desavenças que a morte de qualquer é sempre motivo para a deflagração de revides intermináveis.
Assim, se um familiar do Coronel Teovegildo é tocaiado e morto, que não se espere apenas o pranto. Daí em diante terá início uma caçada sem fim aos algozes. É a honra familiar berrando, gritando, bravejando terror.
Se um parente do Coronel Fenelon ou do Coronel Sá Quaranta tomba pelo cuspe do rifle dos homens de qualquer outro coronel, logo o mundo parece que vai acabar. E o sangue vai respingando em irmão, em primo, em afilhado, até em amigo. E as cruzes vão se somando nas guerras familiares.
Vinditas antigas, de raízes as mais distantes. Guerras se muitas vezes se iniciaram pela disputa de terras, pelas espertas demarcações, pelas invasões premeditadas. O acinte de um é logo traduzido pelo outro como um chamamento ao duelo. Mas mesmo os dois desafetos tombando, as rixas repassam para os sobrenomes familiares.
Por isso mesmo que historicamente as famílias permanecem em vingança após vingança. O troco pela morte de um se dá pela morte de outro, ou mais de um, da outra família. Mesmo quem com menos violência nos dias recentes, ainda perduram os ódios, os confrontos e a cusparada dos rifles. Tiro após tiro, bala após bala, morte após morte, assim o mundo medonho e doentio da honra e do poder familiar coronelista.
Em tal configuração, os rifles nunca descansam, nunca adormecem, nunca são deixados esquecidos num canto. Igualmente, agora travestidos de matadores de aluguel, os antigos jagunços continuam em alerta ao recebimento de ordens. Basta que um serviço tenha de ser feito, então a tocaia é logo preparada, a emboscada é colocada em ação.
Jagunço é bicho desalmado. Mão fria e traiçoeira, impiedoso aperto de gatilho. Não há gente diante de sua mira, apenas um bicho qualquer que merece morrer. Não é diferente com os matadores de hoje. A covardia é sempre a mesma, a violência é sempre a mesma, o cuspe da arma nunca muda nesse mundo bárbaro e atroz.
Por isso mesmo que os senhores do sangue e do mando lançam mão de pessoas tão bestiais para os seus intentos igualmente bestiais. Como o jagunço ou o matador não respeita senão ao mandante e ao gatilho, o que se tem a devastação de famílias inteiras pela boca dos rifles, pelos canos famintos de sangue.
Os rifles de outrora são os mesmos rifles de hoje, ainda que em nome de outras armas ainda mais potentes. Mas a situação é a mesma. Apenas cuspir fogo para a desgraça alheia, para o último gemido de vidas entrelaçadas pelas sangrentas vinditas.


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Lá no meu sertão...


Um retrato do sertão.






Canção do amoroso encantamento (Poesia)


Canção do amoroso encantamento


A mulher amada
o olhar da mulher amada
o carinho da mulher amada
o beijo da mulher amada
o abraço da mulher amada
a nudez da mulher amada
o desejo da mulher amada
o querer da mulher amada

e em mim
apenas a canção amorosa
invadindo coração e alma
e enlouquecido de amor
ser o que ela sente e mais
para depois do gozo dizer
terno é o prazer que me deste!


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – escrevo para não ser lido


*Rangel Alves da Costa


Que ninguém leia os meus textos. Tudo bem. Também não escrevo pra ninguém. Como apenas escrevo e sequer leio para corrigir, talvez ninguém leia mesmo. Escrevo, assim, para não ser lido. Com efeito, ninguém tem a obrigação de lançar um olhar sobre pieguices, maluquices, até idiotices. Absolutamente ninguém está obrigado a ler e reler melancolias, aflições, sofrimentos derramados em letras chorosas. Ora, o sentimentalismo de minha escrita é derramada em lágrimas, em saudades, em tormentos da alma e do coração. Ao invés de declamar o mundo real, vívido, pulsante, procuro flores, jardins, colibris, borboletas, auroras, entardeceres, céus estrelados, noturnos adocicados demais. Quem haveria de se sentir satisfeito em ler sobre manhãs, horizontes, montanhas e orações? Absolutamente ninguém. Que procurem, então, escritas válidas, que realmente atraíam olhares e sentimentos. Ou talvez notícias de violências, de barbaridades e terrorismos. Muita gente gosta de ler sobre corrupção, lamaçal, coisas putrefatas na política e nos poderes. Talvez seja mais válido que a minha escrita. Escrevo pra ninguém, escrevo para não ser lido. E também o mundo de hoje já não sabe ou quer ler goiabas caídas do pé ao amanhecer.


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domingo, 26 de fevereiro de 2017

MÁRIO DE ANDRADE E O VALIOSO TEMPO DOS MADUROS


*Rangel Alves da Costa


Há um texto irretocável do poeta, escritor, folclorista, musicólogo e ensaísta brasileiro Mário de Andrade (1893-1945). Neste – e como se verá adiante – o nosso antropófago faz uma análise intimista das coisas que verdadeiramente faz bem à alma humana, a partir do instante em que se reconhece apenas um ser já mais vivido do que com tempo a viver.
Soa como um Sermão de humildade, compreensão e de amor às coisas verdadeiramente singelas. Ecoa como uma homilia onde o homem é mostrado como ser frágil que não deve ostentar honrarias por onde caminha. Sobressai-se como uma absoluta certeza: chega um tempo onde a essencialidade humana deve ser perante os pequenos afetos da vida e não ante os desafetos dessa mesma vida.
Por que não dizer ser o texto de Mário de Andrade um verdadeiro capítulo do Eclesiastes? Sim, por que nele está exposto que há um tempo pra tudo. Tempo de querer de fartar sem medida e um tempo de apreciar com avidez o pouquinho que se tem. Tempo de apenas viver sem se importar com as graças da alma humana e o tempo onde tudo o que se busca é a aproximação dessa lama humana.
Ou talvez uma canção de adeus às banalidades e necessário e urgente encontro com os grandes significados da vida. E quais seriam tais significados: viver de modo simples, ao lado de pessoas simples, falando a mesma voz simples do povo, sendo simplesmente simples. Um viver onde o maior prazer encontrado deva ser a alegria do convívio e não a mediocridade das aparências.
E ainda, o que Mário de Andrade deixa induvidoso é que nada soma ao viver humano o compartilhamento de sentimentos e instantes que não sejam realmente válidos. De nenhuma valia estar rodeado de pessoas afetadas pelos prestígios e lustros, de nenhuma valia conviver com os supérfluos que somente sugam as essencialidades da vida. No seu viver, o homem, principalmente aquele que já se sente com menos tempo de vida do que viveu, deve colher na simplicidade o alimento que ainda lhe resta.
Eis, enfim, o texto intitulado o “O valioso tempo dos maduros”:
“Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente do que já vivi até agora. Tenho muito mais passado do que futuro.
Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas. As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.
 Já não tenho tempo para lidar com mediocridades. Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados. Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
 Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha. Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos.
 Detesto fazer acareação de desafectos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário geral do coral. ‘As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos’. Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa…
Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade.
 Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade. O essencial faz a vida valer a pena. E para mim, basta o essencial!”.
Deveras, de encantar coração: “Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas. As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço”. “Já não tenho tempo de lidar com mediocridades”. “Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa…”.
Quantos pensam assim, quantos agem assim? Urge que o ser humano se reconheça assim antes que tenha, já na altura dos poucos anos que lhe resta, ter que entristecidamente reler aqueles versos do poema “Instantes”, de Nadine Stair: “Se eu pudesse novamente viver a minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros. Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais, seria mais tolo do que tenho sido. Na verdade, bem poucas coisas levaria a sério. Seria menos higiênico. Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios...”
Ou mesmo se afligiria tendo a canção Epitáfio, de Titãs, como espelho de seu instante: “Devia ter amado mais, ter chorado mais, ter visto o sol nascer. Devia ter arriscado mais, até errado mais, ter feito o que eu queria fazer. Queria ter aceitado as pessoas como elas são...”.
Os arrependimentos acima já haviam sido pensados por Mário de Andrade. Na vida, não vale a pena viver para depois se arrepender. Os instantes nos são dados para que, na humildade e simplicidade, todo o encanto possa ser fruído.


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Lá no meu sertão...


Nas margens do Velho Chico, em Poço Redondo, sertão sergipano, Curralinho é de beleza sem igual.







Viver e sorrir (Poesia)


Viver e sorrir


Ontem novamente sorri
depois da tristeza
novamente me vi
a sorrir

ontem novamente vivi
depois da distância
novamente a senti
e vivi

ela chegou-me assim
borboleta e colibri
e me sorriu tão doce
que sorri e vivi.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – enquanto a chuva não vem


*Rangel Alves da Costa


Sou sertanejo. Sou matuto, caboclo, da terra, do chão. E que orgulho tanto ser desse sertão. Se não fosse a seca, se não fosse o sol o dia inteiro e noite adentro, não havia lugar melhor pra se viver. Mas ainda assim é bom demais. A gente inventa uma paz, inventa uma felicidade, inventa uma lua grande, inventa muita coisa boa de alegrar coração. E enquanto a chuva não vem a gente ora, a gente reza, a gente se ajoelha aos pés do altar, a gente levanta as mãos em direção aos céus e pede a Deus proteção contra todo sofrimento. E igual aos braços abertos do mandacaru, a gente pede chuva, pede trovoada, pede semente na terra e colheita qualquer. Enquanto a chuva não vem a gente é assim, só sertanejo. E sertanejo que afasta na fé a aflição, que dissipa a dor na esperança, que alimenta o amanhã com a certeza das graças de algum dia. Enquanto a chuva não vem a gente é assim. É um tanto cruz, um tanto vela, um tanto pé de altar, um tanto imagem sacra. É filho e pai nesse mundo de benção e desvalia. A gente é tudo, e tudo por ser tão sertão. A gente é assim.


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sábado, 25 de fevereiro de 2017

“NA PRIMEIRA MANHÃ QUE TE PERDI...”


*Rangel Alves da Costa


Jamais pensei em te perder. Mas na primeira manhã depois que te perdi, tudo em mim se resumia na canção de Alceu Valença: “Na primeira manhã que te perdi, acordei mais cansado que sozinho. Como um conde falando aos passarinhos, como uma bumba-meu-boi sem capitão. E gemi como geme o arvoredo, como a brisa descendo das colinas, como quem perde o prumo e desatina, como um boi no meio da multidão. Na segunda manhã que te perdi, era tarde demais pra ser sozinho. Cruzei ruas, estradas e caminhos como um carro correndo em contramão. Pelo canto da boca num sussurro fiz um canto demente, absurdo. O lamento noturno dos viúvos, como um gato gemendo no porão. Solidão”. E mais: o absurdo de não aceitar estar sozinho, o desencanto com tudo que se mostrasse vida, a desesperança em qualquer esperança de felicidade. Amargar o sal, amargar o veneno, amargar a dor, amargar o dissabor da solidão.
Jamais pensei em te perder. Mas te perdi. Pensei que poderia suportar a distância apenas como uma saudade, mas não. Ao invés da mera saudade ou do entristecimento pela saudade, eis que em mim um tempo de fúrias e tempestades, de terríveis vendavais, de aterrorizantes furacões. Um tempo de deserto escaldante sob os pés, de fogo queimando nas entranhas, de punhais se lançando vorazes sobre o meu peito.
Jamais pensei que amar – e depois ser desamado – pudesse ter consequências assim. É como se toda ternura tivesse se transformado em outono, como se toda alegria tivesse se transformado em angústia, como se toda esperança boa tivesse sumido em adeus. Não é fácil anoitecer, adormecer nem acordar assim, assim depois da solidão do adeus e da despedida sem haver adeus, apenas um fim pela palavra. Não é fácil recordar o beijo e não ter mais, o abraço e não ter mais, o carinho e não ter mais, o amor e não ter mais, o prazer e não ter mais. Não é fácil recordá-la deitada ao leito, avistá-la deitada na cama, sentir ainda seu olhar chamando com palavras doces.
Depois de te perder, de repente ter de abraçar a solidão. E, como ainda diz Alceu Valença noutra canção: “A solidão é fera, a solidão devora. É amiga das horas prima irmã do tempo, e faz nossos relógios caminharem lentos, causando um descompasso no meu coração. A solidão é fera, a solidão devora. É amiga das horas prima irmã do tempo, e faz nossos relógios caminharem lentos, causando um descompasso no meu coração. A solidão é fera, é amiga das horas, é prima-irmã do tempo, e faz nossos relógios caminharem lentos, causando um descompasso no meu coração. A solidão dos astros, a solidão da lua, a solidão da noite, a solidão da rua. A solidão é fera, a solidão devora. É amiga das horas prima irmã do tempo, e faz nossos relógios caminharem lentos, causando um descompasso no meu coração”.
Ontem mesmo anoiteci sem avistar lua e estrelas, sem sentir a noite, sem nada sentir, apenas a voraz certeza de estar sozinho, de estar sem a canção mulher. Além do noturno sombrio, a bruma da solidão, a névoa escurecida no lugar da face de presença tão bela. A noite inteira assim, entre pensamentos e pesadelos, entre saudades e distâncias. O telefone foi meu inimigo, nenhuma mensagem chegou e nenhum sinal de sua lembrança lembrando-se de mim. Acordei ainda na escuridão e levantei quase sem caminhar. Por que é tão difícil assim depois de perder alguém que se ama tanto?
Não sei o que será de mim daqui em diante. Um café, um cigarro, outro café e outro cigarro. Ao redor apenas o silêncio. Olho ao lado e já não avisto meu amor, minha bela mulher, adormecida como anjo em nuvem de ternura. Mais um café e mais um cigarro. Gostaria de ir até ali, até a cama e beijar seus cabelos, seu corpo, acarinhá-la inteira. Mas não. Ela já não está mais ali onde sempre amanhecia. Ela partiu e eu fiquei. E agora em mim apenas a canção: como um gato gemendo no porão, solidão!


Escritor
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Lá no meu sertão...


A última canção do sol...








No peito (Poesia)


No peito


Eis o sangue esvaindo
da lâmina afiada
deste teu punhal
no meu peito

sorriu-me
disse não
e o sangue
em mim

assim o amor
e seu fim.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – noturnos de solidão


*Rangel Alves da Costa


Não adianta chorar. Não adianta sofrer. O destino não é de ninguém, apenas do destino. Errôneo é imaginar que tudo acontece segundo o desejo próprio. No outro lado está o outro e o próprio destino. Sim, o fato aconteceu, a tristeza veio, o chão parece que vai desabar. Fingir não adianta. O que se esconde é apenas a verdade. Não há outra coisa a fazer senão enfrentar a realidade. Ainda que lanhando a pele ou apunhalando o peito. Dói demais perder, principalmente quando a perda não carrega em si motivo suficiente. Do sofrimento ninguém pode fingir, da saudade também não. O que se tem a fazer é não definhar como folha de outono ou apenas se deixar levar pela ventania. Mas quando tudo demais além da conta, também não adianta apenas virar a página. Rasgá-la de vez será a única forma de não mais encontrar diante de si o escrito da dor em um nome.
  
Escritor
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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

A CASA, O TEMPO, O VENTO


*Rangel Alves da Costa


A casa. Lar que era vivo e transbordante  nos tempos idos, com portas e janelas abertas, pessoas chegando e saindo, fumaça subindo da lareira e cheiro de café torrado ao entardecer.
A casa. O ninho familiar, com pessoas vivendo os seus destinos, compartilhando instantes de alento e desalento, sem imaginar quanto o tempo vai transformando a existência, tornando solidão aquilo que era tão presença.
“Menino cuidado com pingo de chuva, pra cair gripado e febril é num instante. Menina venha cá arrumar essas bonecas dentro da casinha. Pensa que boneca de pano não tem sentimento, é? Maria coloque o café no pilão e depois estenda a roupa no varal...”.
“Zezinho, já avisei que não quero ver você subindo sozinho naquele cavalo alazão. O bicho ainda tá brabo, arreliento, e é arriscado por demais que desembeste com você em cima. Também não quero que saia por aí de arapuca na mão pra pegar passarinho. Tem cobra e bicho perigoso por todo lugar. Se quiser brincar que vá correr na malhada com seu cavalo de pau ou cuidar da sua fazenda de ponta de vaca...”.
“Mãe, Zezinho roubou o cabo de minha vassoura. Mãe, eu vi Aninha pegar seu talco de pó pra botar nas bonecas dela. E também saiu do quarto com uma alfazema escondida. E também ouvi quando conversava com uma boneca e dizendo que um príncipe encantado qualquer dia vai aparecer na janela do quarto dela. E que vai mandar o bicho-papão ficar debaixo de minha cama...”.
“Cale a boca vocês dois. Mas quem já se viu duas criaturinhas iguais a vocês duas. Um vem e diz que a outra fez isso, a outra vem e diz que o outro fez aquilo. Mas que coisa mais feia. Agora venha cá Zezinho, e depois venha você Aninha, pois quero saber direitinho dessas histórias. E vão preparando o lombo...”.
Os anos foram passando e a movimentação na casa continuava intensa, mas as vozes tomavam outros tons, os gritos já não eram da criançada nem dos pais ordenando a convivência. Outras palavras, e até alvoroços, começaram a se espalhar pelas paredes e arredores.
“Corra, corra Zezinho, vá chamar o doutor. Aninha se apresse aqui, me ajude a abanar sua mãe que parece sufocada, sem um pingo de ar. Abra a janela, tire essa cortina da porta. Faça uma garapa, traga aquele chá. Abane aqui que ela parece que nem pode mais respirar...”.
“Corra aqui pai, chega, venha logo pelo amor de Deus. Não estou sentindo mais nenhuma respiração. Será que ela morreu, será que ela morreu? Responda, será que ela morreu? Ela não pode morrer, ela não vai morrer. Será que ela morreu? Responda, responda pelo amor de Deus...”.
No mês seguinte o pai não suportou a dor do luto e também faleceu. Estava de lenço à mão sentado numa cadeira na varanda quando pendeu a cabeça para o silêncio da vida. Parecia sorridente na feição envelhecida mil anos em poucos dias. Quando a filha encontrou-o assim, talvez já caminhando em busca de sua amada, pela última vez um grito ecoou na casa.
Foi o último grito, mas cujo som continua ecoando nas sombras escondidas do passado. Apenas os dois irmãos continuando ali, apenas as palavras inevitáveis eram pronunciadas.
“Não suporto mais viver aqui nesse sofrimento. Vou embora daqui. Vou morar na casa de Tia Tonha, lá na cidade. Só tenha pena de lhe deixar sozinho aqui. Nessa idade e ainda não pensou em casar. Parece que nossa sina é viver na solidão pela vida...”.
“Também vou sentir muito sua falta. Mas também sei que não pode continuar nessa situação de desalento. Ninguém vive feliz numa casa que só traz tristeza e dor no coração. Olho pro lado e parece que vejo nossa mãe, olho pra outro e sinto a presença do nosso pai. E eles olhando tudo pelos retratos na parede. Mas vá. Também não vou demorar aqui não. Vou vender tudo, entregar a sua parte e depois penso que estrada tomar...”.
Vendeu a casa. Quem a adquiriu nunca usou como habitação. Os anos foram passando e tudo envelhecendo, se deteriorando, numa dolorosa paisagem. As janelas abertas, a porta caída. Folhagens mortas sendo levadas pelo vento e ali fazendo moradia. Tudo abandono e solidão, apenas a ventania zunindo triste ao redor.
Quando chegava o entardecer um cheiro forte de café torrado era sentido por quem passava ao redor. E vozes, e vozes na noite. E depois um grito desesperado. E novamente o silêncio dos tempos.
E tudo nos idos da memória que alegra e chora. Tudo na relembrança daquela casa, tudo na folha do tempo, tudo no sopro do vento.


Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
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Lá no meu sertão...


Sertanejas em proseado ao entardecer.




Eu e Zefinha (Poesia)


Eu e Zefinha


Depois do galope mundo
gole d’água e viola enfim

cantiga de meu amor
sei que ela gosta de mim

Zefinha de roupa florida
alfazema cheirando jasmim

na boca um avermelhado
na pele uma flor de jardim

gosto tanto de Zefinha
meu anjinho de céu querubim

mas Zefinha cisma comigo
só falta me fazer trampolim

me xinga e me chama de tudo
inda diz que sou tão ruim

faça assim não Zefinha
deixe de ser tanto assim

comprei loção bem cheiroso
quero em Zefinha alecrim

e depois que ela acalmar
sua doçura de gostoso quindim

e eu beijando Zefinha
e ela me chamando de anjim.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - para o carnaval, não quero carnaval...


*Rangel Alves da Costa


Para o carnaval, não quero carnaval. Para o carnaval quero o meu amor, quero o seu abraço, quero o seu beijo. Para o carnaval, não quero carnaval. Para o carnaval quero a vela acesa, quero o rosário, quero a iluminada face sagrada diante de mim. Para o carnaval, não quero carnaval. Para o carnaval quero uma montanha, quero um silêncio, quero uma solidão. Para o carnaval, não quero carnaval. Para o carnaval quero um bom livro, quero uma boa história, quero uma realidade de letras e sonhos. Para o carnaval, não quero carnaval. Para o carnaval quero uma distância, quero uma casinha, quero uma rede, quero uma lua e um punhado de sol. Para o carnaval, não quero carnaval. Para o carnaval quero a visita ao singelo mundo, ao humilde homem, ao pacato lugar, ao umbral da janela e sua moringa d’água e cocada de frade. Para o carnaval, não quero carnaval. Para o carnaval quero um quarto, quero uma janela, quero uma porta, quero uma estrada, quero um caminho. Para o carnaval, não quero carnaval. Para o carnaval que um incenso, uma vela acesa, um salmo sem pressa, um evangelho de paz. Para o carnaval, não quero carnaval. Para o carnaval quero a memória, quero o pensamento, a reflexão, o reencontro do ser. Para o carnaval, não quero carnaval. Para o carnaval quero adormecer, quero amanhecer, quero apenas viver. Assim será meu carnaval. Não que tudo assim aconteça, mas que assim seja a minha folia de espírito e alma.


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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

ASSIM COMO AS ANDORINHAS, ASSIM COMO OS GAVIÕES


*Rangel Alves da Costa


O viver é assim como um viver de andorinhas e gaviões. Na concepção popular, andorinha simboliza luta, esperança, perseverança, a metamorfose, a vontade de realizar. Já o gavião, como toda ave de rapina, predadora e carnicenta, simboliza a perseguição, a destruição, através de voos rasantes para destruir os sonhos de outros voos.
Também conhecida como ave da partida e do regresso, a andorinha representa o eterno retorno e a ressurreição, em despedida e retorno para o recomeço. Busca refúgio no inverno para reaparecer no verão. Mas nunca voa muito distante, pois sempre preocupada em retornar para reiniciar os seus planos futuros e os seus próximos voos.
Já o gavião é um poderoso predador que não se inibe em atacar qualquer presa. Astuta, evita a copa alta das árvores para se manter furtivo entre os arbustos, de onde dá voos certeiros para atacar o que estiver ao redor. Parente e muito aproximado na aparência do carcará, faz da carniça um de seus pratos prediletos. Contudo, gosta mesma de ferroar suas vítimas para sentir a vida se esvaindo no sangue que incessantemente jorra.
Como visto, cada ave com seu jeito de ser, com seu estilo próprio de viver e de se alimentar. A andorinha, sem atacar ou ferir os demais animais, sobrevive dos grãos e restos encontrados nos seus pousos. O gavião, sempre violento e faminto, não mede consequências para fazer de vítima o mais inocente dos animais. Sua sanha é tamanha que leva no bico a marca sangrenta daquilo que vitimou.
Então vai a andorinha em seu voo pacífico, em seu voo leve, com seu destino de horizonte. Deseja apenas seguir, voar e voar muito mais, para depois retornar na mesma placidez da partida. Então, de baixo, avistando a liberdade da andorinha ao alto, o gavião logo imagina um jeito de tornar aquela paz em grito de dor e de aflição. Não deseja mais que a andorinha cumpra seu destino de vida, e sim que se prostre ante o punhal no seu bico.
Então a andorinha percorre sua estrada nas alturas sem ao menos imaginar que já foi avistada como vítima. Segue seu voo sem pensar que a maldade lhe aguarda no retorno, sem imaginar que sua paz já se ressente da ameaça. Enquanto isso, na sua persistência maldosa, o gavião afia suas garras, toma seu veneno, se alimenta de um ódio incompreensivelmente concebido. E se prepara para dar fim ao destino de paz da andorinha.
Na natureza, apenas uma presa e um predador. Aliás, é lei natural que assim aconteça, mas pelo instinto da sobrevivência e não pela simples maldade. Significa que alguns animais submetem a outros para se alimentar, para afastar perigos, para delimitar territórios. Porém, se aproxima demais do humano quando inverte a realidade do destruir para sobreviver para a mera dizimação pela infame crueldade.
Urubus e carcarás também são assim. São carnicentos, agourentos, terríveis predadores. São domados por instintos sanguinários e cruéis. São frios na ação e impiedosos na violência. São insensíveis e desumanos, acaso nas aves de rapina existisse um laivo de humanismo. Ferem, furam, bicam, cortam, sangram, fazem jorrar as seivas vitais das mais inocentes vidas. O pior é que nem sempre para se alimentarem, mas tão somente pela motivação da maldade.
Não seria errôneo se tudo isso fosse dito com relação ao ser humano. Pessoas existem que são verdadeiros predadores, que são terríveis e temíveis rapinas, que agem não pela necessidade de defesa, mas pelo simples desejo de ferir, magoar, violar a paz e a vida. Pessoas ocultadas em gaviões que outra coisa não fazem senão atacar a vida alheia. Então aquela pessoa que apenas procura viver como andorinha, seguindo o seu destino de passo e luta, de repente passa a ser atacada pela crueldade do próximo.
Gaviões humanos que alardeiam falsidades, que alastram mentiras, que semeiam discórdias, que se regozijam com o sofrimento do outro. Predadores humanos que vivem à caça da paz para torná-la em aflição, que vivem à espreita da felicidade para transformá-la em sofrimento, que se preocupam somente em subtrair as esperanças e os contentamentos. Numa selva tão vasta e tão enegrecida, eles estão por todo lugar. Os olhos são avistados, os passos ouvidos, as presenças sentidas.
Ante as tocaias dos gaviões, triste do destino das andorinhas humanas. Há uma vida inteira a ser vivida pelos que desejam viver, há uma felicidade que alguns desejam abraçar, mas em meio à selva de asfalto e chão sempre aqueles que cruzam os caminhos para, a todo custo, impedir a caminhada. Talvez não contentes com si mesmos, partem com venenosos punhais em direção aos que desejam apenas voar seus sonhos, suas vidas, suas esperanças. E por isso tanta violência e tanta maldade no mundo.
Mas que sigam as andorinhas. Que busquem seus céus e horizontes. Os gaviões não alcançam tudo. E contra todo predador haverá um predador ainda maior: o homem na sua autodestruição.


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Lá no meu sertão...


E eles foram passando. Seguindo e seguindo. E o sertão inteiro tão lindo e tão lindo...






Tudo é possível ao coração (Poesia)


Tudo é possível ao coração


Na primeira flor da manhã
eu vi o ainda possível mundo

no primeiro brilho do sol
eu vi o ainda possível homem

no voo da borboleta e do colibri
eu vi o ainda possível sonho

no pôr do sol de fogo e brasa
eu vi o ainda possível amor

no céu noturno de estrela e lua
eu vi a ainda possível poesia

não quero avistar nada além
dessa esperança de paz e bem

tudo é possível ao coração
que abre janela e porta ao amanhecer.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - quando chega o momento de divorciar


*Rangel Alves da Costa


Sou advogado também da área de família, lidando muito com questões sobre divórcio, alimentos, visitas, etc., e sei muito bem quanto é traumático, até para o profissional, mexer em vespeiros assim. A primeira observação que se faz é a antítese amorosa. Tanto amor de um dia parece ter acabado de repente. E mais: tornam-se verdadeiros inimigos, ferozes, vorazes, com um querendo destruir o outro a qualquer custo. Tudo é esquecido. As juras de amor, as promessas perante o altar, os compromissos de comunhão de vida. Até que a morte os separe que nada. Até que venham os ciúmes, as traições, os arrependimentos, as discórdias. Aquilo que era meu bem, logo se transforma em meus bens. Quero isso, tenho direito àquilo. E até que quero deixar sem nada, no olho da rua, mendigando a sorte. Os filhos, estes logo se tornam objeto de barganha. Só isso de pensão? Mas de jeito nenhum. Quero também pensão pra mim. Se ele vai gastar com rapariga também tenho direito. E diz: ele nunca prestou, sempre foi um calhorda, um beberrão raparigueiro. E ele diz: se arrependimento matasse. E assim vão se digladiando até a sentença. Nas audiências, cada um cuida de levar espingarda e mosquetão no olhar. Só falta fulminar o outro ali mesmo. E aquele mesmo que ontem era meu amor, meu benzinho, minha vida.


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quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

BANDA MUNICIPAL DE POÇO REDONDO: ORGULHO SERTANEJO QUE NÃO PODE CALAR


*Rangel Alves da Costa


Mesmo os mais jovens, certamente muitos já ouviram estes refrãos: “Estava à toa na vida, o meu amor me chamou pra ver a banda passar cantando coisas de amor. A minha gente sofrida despediu-se da dor pra ver a banda passar cantando coisas de amor...”. Pois é, estrofes da música “A Banda”, de Chico Buarque, exatamente retratando a magia da banda musical interiorana e que, toda vez que passa, consegue tudo alegremente transformar.
E agora, perante a população de Poço Redondo e todo o sertão sergipano (e mesmo além-fronteiras), indago: quem já não ouviu e se encantou com a magia ecoada pela Banda Municipal, que ao passar ou se apresentar sempre teve o dom de transformar a beleza em verdadeiro fascínio. Quanta magia nos instrumentos, quanta formosura nas mocinhas e nos rapazes, quanta graça e singeleza nas vestes, quanta perfeição nos gestos e nas coreografias.
Se no passado Poço Redondo tinha orgulho de suas praças, mais recentemente passou a se orgulhar de sua banda. Lembro-me muito bem que meu pai Alcino Alves Costa brilhava os olhos com mais força, deixando marejar seu contentamento, toda vez que a banda tocava em alvorada à sua porta. E era apenas uma parte, que se imagine o agrupamento completo com cerca de cinquenta jovens em perfeita sincronização de coreografias e acordes?
Como diz a música de Chico Buarque: todo mundo parava para ver a banda passar. “A moça triste que vivia calada sorriu. A rosa triste que vivia fechada se abriu. E a meninada toda se assanhou pra ver a banda passar cantando coisas de amor. O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou que ainda era moço pra sair no terraço e dançou. A moça feia debruçou na janela pensando que a banda tocava pra ela...”. Contudo, a tristeza da realidade vem agora: “Mas para meu desencanto o que era doce acabou... E cada qual no seu canto. Em cada canto uma dor...”.
Sim. Infelizmente eis a realidade da banda musical de Poço Redondo: o que era doce está em vias de acabar. E cada qual no se canto. Em cada canto será uma profunda dor. Não só na população que tanto se acostumou a admirar seu orgulho musical como em cada um dos seus integrantes. A verdade é que todos agora estão aflitos ante as incertezas, estão entristecidos demais perante os comentários surgidos dando conta de um mundo de desajustes. Ninguém sabe dizer qual o destino da banda, se terá continuidade, quais os recursos que a ela serão destinados. Lamentável que assim aconteça.
Batizada com o nome de Banda Municipal Sertão Música, numa das gestões de Enoque Salvador de Melo, um projeto foi aprovado pela Câmara Municipal no sentido de oferecer uma bolsa de incentivo aos seus integrantes, sendo de dez por cento de um salário mínimo. Por muito tempo teve três professores, um maestro, um coreógrafo e um orientador de percussão. Contudo, mesmo ganhando cada vez mais importância, jamais teve sede própria. E a falta de um espaço próprio sempre foi sentido pelos integrantes que necessitavam se reunir, ensaiar, programar apresentações. Tal problema jamais foi resolvido.
Ainda assim, mesmo com todas as dificuldades, a Banda Municipal deu voos mais altos que os esperados ante suas condições. A Banda de Poço Redondo ainda é considerada uma das melhores de Sergipe, alcançando a quarta colocação no primeiro concurso de bandas que participou. Sendo também filarmônica, faz apresentações em homenagens, eventos religiosos e festas. E a administração municipal necessita reconhecer e valorizar ainda mais essa verdadeira flor de cato num mundo de aridez.
Como relata a integrante de mais de dez anos, Paula Daiany: “Somos estrelas em muitas cidades, como referência temos Ribeirópolis, onde somos aguardados e aplaudidos de pé. E sempre nossa presença é uma honra para nossa cidade e outras onde nos apresentamos. Aonde vamos é só elogios, e elogios também recebemos nas emissoras de rádio e nas redes sociais. Por onde passamos, as secretárias municipais nos enviam vídeos de agradecimentos. Tudo isso aumenta nosso deseja de permanência e com conquistas cada vez maiores. Enfim, essa Banda cresceu muito, e queremos continuar crescendo. Mas...”.
Mas o problema que surge agora diz respeito justamente às indefinições. Surgem comentários de todos os tipos. Dizem que a grande maioria dos integrantes terá que sair, dizem que vai ser toda renovada, dizem e dizem. Contudo, muitos problemas surgem com isso. Não se pode ter a mesma a qualidade numa banda que praticamente começa do zero. E se começar. Acaso mudanças sejam necessárias, que estas sejam aos poucos, de modo a não desarmonizar o que já vem sendo construído desde mais de dez anos. E o mais importante é que não ocorram ingerências políticas nas mudanças dos integrantes.
Paula Daiany está corretíssima em suas preocupações. Hoje, aqui mesmo no facebook, um texto maravilhoso escrito por Nadyne Cavalcante expôs com brilhantismo a situação. Quanto a mim, lamento profundo profundamente que tudo isso venha ocorrendo. Tenho os mesmos olhos de meu pai diante da banda: um brilho molhado de alegria. E temos certeza que Poço Redondo inteiro quer que sua fênix musical renasça das cinzas.


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Lá no meu sertão...


Myllinha minha...




A escolha do pássaro (Poesia)


A escolha do pássaro

Pássaro
passarinho
voei
cantei
amei
estou aqui

do alto
a terra
mais alto
o céu
e o pássaro
livre

mas querer
somente
o ninho
estar
somente
sozinho.

Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - lágrimas também têm sede


*Rangel Alves da Costa


As lágrimas não somente se despejam, se derramam, se deitam molhadas sobre a face. As lágrimas não somente escorrem angústias, tristezas e aflições. As lágrimas não somente transbordam dos olhos como enxurradas de sofrimentos. As lágrimas também têm sede. As lágrimas não querem somente se esvair da fonte do olhar, elas não querem apenas deixar em deserto o oásis brilhoso dos olhos. Elas também têm sede. As lágrimas também querem beber alegria, contentamento, felicidade. As lágrimas também querem se alimentar do prazer, do gosto, da vontade boa. As lágrimas também querem se encharcar de motivos bons, de fluídos positivos, das melhores esperanças. E assim porque precisam recuperar suas forças, encher-se de ânimo e vivacidade, mas não para depois se derramar em pranto de luto e sofrimento. Mas para ser sereno leito escorrendo pela face quando o coração quiser demonstrar em pranto o grito maior de uma felicidade.


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terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

AQUELA FESTA DE AGOSTO


*Rangel Alves da Costa


Nem chegava o mês de agosto e Poço Redondo já parecia outra cidade, remoçada, bonita, florida, aconchegante. Era nesse período que grande parte das casas recebia pintura nova, vistosa, com barra vermelha e tudo e o mais.
Quando o mês da festança maior da cidade abria as portas, então a povoação se transformava totalmente. O que se avistava eram as moças solteiras passando com panelas para serem areadas nas beiradas do tanque velho. Necessitavam dar brilho em tudo para receber os visitantes.
Pelas calçadas, cadeiras espalhadas para receber colchas de veludos, panos mais chiques, cobertores floridos. Também uma época onde os paletós de linho e roupas festeiras eram retirados dos escondidos dos guarda-roupas para providenciais banhos de sol. Por isso um cheiro de naftalina danado por todo lugar.
Bastião Joaquim já coçava a cabeça pensando em receber da melhor maneira possível seus amigos da Serra Negra. Seu prazer era imenso, pois aquele povo do outro lado da serra era com se tivesse raiz no lugar. E tinha mesmo, pois os Carvalho desde muito encravados nas terras poço-redondenses com suas fazendas de meio mundo.
João Maria de Carvalho, o coronel de patente e mando, seu irmão Piduca Alexandre, seu filho Heraldo e seu sobrinho Evaldo, eram assíduos visitantes de Poço Redondo. Do mesmo modo Oza, Maria de Ioiô, João de Ioiô e tantos outros alexandrinos que arribavam para o lado de cá principalmente em dias da festa grande.
Entre as casas de Tonho Rosendo, Zé de Lola e Bastião Joaquim, os alexandrinos encontravam certeira e aprazível guarida. O Coronel João Maria se aboletava numa rede na sala da frente da casa de Zé de Lola e dali mesmo ordenava além-fronteiras. Já Heraldo e Evaldo deixavam a casa de Bastião Joaquim no passo certeiro dos bares, dos forrós, das cavalgadas, dos locais onde houvesse moça fogosa e namoradeira. Até de homem casado.
A chegada de Heraldo de Carvalho era uma preocupação a parte para Delino, pois sempre temendo que o doutor da Serra Negra repetisse um gesto de outra ocasião: com bar e salão lotados, com forró comendo solto, eis que o homem entra com cavalo e tudo. Entrou e foi em direção ao balcão. E quem era besta de dizer um tantinho assim?
Daquele chapéu largo e gestos vaidosos, apenas um homem bom. Melhor ainda seu primo Evaldo, que só pensava em namorar. E sem a presença deles a festa de agosto não tinha graça. Como não tinha graça sem a chegada do parque, sem a presença de Manezim Tem-Tem, sem Seu João Retratista, sem a visita certeira de Expedito, o sarará-avermelhado e desajuizado.
Manezim Tem-Tem tinha freguesia mais que garantida. Os sapatos de festa, devidamente guardados de outras ocasiões, eram colocados em suas mãos ali mesmo nas calçadas. Retornavam brilhando mais que sapato novo. Não podia faltar retrato de jeito nenhum, nem antes nem durante a festa, por isso mesmo que Seu João Retratista tinha um trabalho danado de armar e desarmar seu tripé para as fotos em meio aos jardins floridos daquele Poço Redondo de antigamente.
Era o período do alavancamento comercial da cidade. Pano de corte, lustroso, enfestado, era com as irmãs Marques: Mãezinha, Conceição e Izabel. Ter uma camisa de volta-ao-mundo era uma grã-finagem pra poucos. Mas Izabel Marques possuía à venda. Calça Lee da legítima, calça boca de sino, saia rodada, vestido ajardinado, tudo isso também colocado à venda no comércio local e também nas caminhonetes que chegavam de outras localidades.
Forró por todo lugar, desde o início do mês. Não havia salão onde o fole não roncasse desde cedinho até madrugada adentro. Agenor da Barra, Dudu Ribeiro, Zé Aleixo, Zé Goiti, Dida e tantos outros, tudo arrastando seus foles para a alegria e o chinelado sertanejo. Na memória de Zelito, o cantador maior de forró, certamente a doce recordação desse tempo.
Cinco da tarde em ponto. A música O Milionário, anunciava o início das atividades no parque. Daí em diante uma festa só e mais tarde o cheiro das brilhantinas, do Toque de Amor, do Charisma, e os gemidos pelos sapatos apertados. E aquelas donzelas em suspiros sem fim.


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Lá no meu sertão...


Minha caboclinha sertaneja. Minha bela, bela, bela namorada...




De olhos fechados (Poesia)


De olhos fechados


Fecho os olhos
quando vem a saudade
e nada vejo mais
a não ser a saudade

tão bela é o meu amor
assim em retrato suave
e sobre o umbral da janela
seu olhar pássaro em voo
e o seu aceno à estrada
onde chego para um abraço

de olhos fechados
uma saudade molhada
em lágrimas entristecidas
na minha solidão enternecidas.


Rangel Alves da Costa