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sexta-feira, 14 de outubro de 2016

UMA CACHACINHA


*Rangel Alves da Costa


Seja burguês ou assalariado, da metrópole ou da roça, não há quem dispense uma cachacinha, seja de entrada - para esquentar, como tanto se diz - ou mesmo entremeando outras bebidas. Tem gente que diz não ao uísque de marca e idade, porém não consegue negar o copo da aguardente que lhe é oferecido. É um gosto popular inequívoco, democrático, sem qualquer frescura na beberagem.
A cachaça possui tamanha unanimidade e importância perante os costumes que até já teve sua denominação legalizada. Com efeito, o artigo 92 da lei federal 4.851/2003 preceitua: Cachaça é a denominação típica e exclusiva da aguardente de cana produzida no Brasil, com graduação alcoólica de trinta e oito a quarenta e oito por cento em volume, a vinte graus Celsius, obtida pela destilação do mosto fermentado de cana-de-açúcar com características sensoriais peculiares, podendo ser adicionada de açúcares até seis gramas por litro, expressos em sacarose.
O apelido de aguardente vem precisamente pelo seu efeito imediato ao ser ingerido. Afeiçoa-se a água, às vezes com o mesmo aspecto e brancura, mas quando tomada logo começa a arder, tendo-se, pois, como uma água ardente. E é por isso, pelo seu ligeiro queimor, que logo os olhos também afogueiam e as mãos reagem numa batida de dedos. Diz-se ainda da pinga tanto como a cachaça como a aguardente. Mas a primeira resulta da fermentação do mel da cana-de-açúcar, enquanto a aguardente deriva da fermentação da borra do mel fermentado.
Mas tanto faz que seja pinga, cachaça, aguardente ou caninha, vez que o bebedor quando faz exigência é só pela marca ou pela aparência. Tem gente que gosta de Pitu, Serra Grande, Pau de Arara, Caranguejo ou Tatuzinho, mas também tem gente que bebe o que primeiro avistar no bar ou bodega: Ypióca, Caninha da Roça, Muricy, Serrinha e muitas outras. Distingue-se também a cachaça industrializada, artesanal (de marcas famosas e preços elevadíssimos) e a pura de engenho.
Para muitos, a cachaça autêntica é aquela oriunda do engenho, branquinha, pura, com fermentação própria e aroma peculiar. Esta, quando colocada em barris ou outros vasilhames, vai se espalhando pelas distâncias, chegando aos sertões e aos botequins. Contudo, dificilmente o sujeito irá encontrar uma cachaça pura de engenho num botequim, pois a serventia desta quase sempre é para ser misturada com as coisas da terra e colocada à venda com gosto próprio e sabor diferente.
Pelos sertões, onde a cachaça é amiga, festeira e sempre apreciada, não há botequim que não a tenha como atração maior. Há vendeirim que não vende outra coisa que não a cachaça matuta, cabocla, preparada na mistura por ele mesmo. Não vende cinzano, rum ou qualquer destilado industrializado, mas tão somente a danada misturada com as ofertas da mata e transformadas em apreciados sabores. Dose a dose, lapada a lapada, tudo por cima do velho balcão carcomido de tempo. E se tiver uma frutinha de acompanhamento, então a desculpa para mais uma relepada.
É um cenário já não tão comum, pois as autênticas bodegas estão rareando cada vez mais. Mas ainda é possível uma precisa descrição, até mesmo por que as andanças interioranas sempre levam a lugares assim. No velho botequim, de poucas prateleiras com suas garrafas antigas e empoeiradas, nada mais se avista senão as garrafas de cachaça logo na proximidade do balcão. E mais ao lado uma tábua com paus enfiados e copos encardidos por cima.
Não uma cachaça qualquer, de qualquer litro ou marca, mas a legítima casca de pau, como pelos sertões é mais conhecida a aguardente pura misturada à casca, folha, fruto, raiz ou raspa de pau. Quando misturada, a brancura da aguardente vai tomando a cor de sua mistura. Há vendeirim que não coloca a cachaça à venda antes de três dias de sua infusão. Dizem que é o tempo suficiente para que a bebida absorva a essência da planta e passe a apresentar a cor específica da madeira.
Não é ofício para qualquer um, pois o vendeirim preparador deve ter cuidado para não colocar demasiada raiz de pau e a bebida logo passar a amargar além da conta. Também deve saber o momento ideal para ir completando o litro com mais cachaça, sob pena de fazê-la perder o sabor. E também sabe que não vale a pena batizar a pinga. O bom bebedor conhece quando a cachaça está aguada até mesmo com o litro ainda na prateleira. Já o que não conhece corre o risco de beber e logo sentir os inchaços aparecerem.
Mas há de tudo num bom botequim. Um sortimento de fazer o bebedor pensar duas vezes antes da escolha. Angico, umburana, quixabeira, ameixa, barbatimão, cidreira, cravinho, e muito mais. E também ao que a casca de pau se destina como prevenção, pois é sabido que antes de comer carne de porco gorda, sarapatel ou feijoada, a barriga deve ser forrada com uma boa lapada de angico. Mas se mais tarde a barriga doer, recorre-se a uma talagada de barbatimão e tudo estará resolvido.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com 

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