Antropologia da saúde

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Antropologia da Saúde pode ser compreendida como a aplicação da antropologia ao estudo das práticas de manutenção e recuperação da saúde em diferentes culturas ou etnias. É praticamente um consenso entre pesquisadores da área que o fenômeno saúde/doença, não deve ser compreendido de forma reducionista limitada ao modelo bio-médico.[1] Segundo Minayo,[2] é necessário adotar uma reflexão antropológica nos estudos e nas praticas de saúde como forma de ampliar seu olhar sobre o fenômeno que se estuda e a grande contribuição da antropologia é a sua tradição de compreensão da cultura.

Alguns autores usam indistintamente a denominação antropologia médica, etnomedicina e antropologia da saúde, outros apresentam distinções na delimitação de objeto a aplicação dos recursos metodológicos desta ciência social. Para Sevalho e Castiel tal integração interdisciplinar é uma empreendimento que implica importantes transformações no âmbito das disciplinas envolvidas requerendo uma readequação de vocabulários e específicos e uma combinação de técnicas e métodos de investigação [3]

Antropologia médica e/ou antropologia da saúde

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A designação antropologia médica ou da saúde pode ser feita a partir da ênfase dada a diferentes aspectos do processo saúde - doença, como referido, ou o comportamento humano para obtenção e manutenção da saúde através de práticas culturais, ou a ênfase no tratamento de doenças e recuperação da saúde. Naturalmente, trata-se de uma divisão com fins didáticos pois não há como isolar um fato social do seu contexto ou realidade construída pelas sociedades humanas com sua linguagem e cultura característica.[4]

Segundo Helman [5][6] integrante do National Health Service (NHS) a antropologia médica desenvolveu-se como um ramo da antropologia cultural e social, sem descartar sua base clínica-biológica aborda a forma como as pessoas, em diferentes culturas e grupos sociais, explicam as causas dos problemas de saúde, os tipos de tratamento nos quais elas acreditam e a quem recorrem quando adoecem, ressaltando ainda que também é o estudo de como essas crenças e práticas relacionam-se com as alterações biológicas, psicológicas e sociais no organismo humano, tanto na saúde quanto na doença. (Helman, 2009 o.c)

Para McElroy [7] a Antropologia Médica pode ser ainda definida como o estudo das doenças e saúde humana, sua adaptação biocultural e sistemas de saúde. Citando ainda o compêndio "Medical Anthropology" [8] de George M. Foster (1913-2006) e Barbara K. Gallatin Anderson (1921-2008), McElroy identifica no desenvolvimento desta aplicação inter ou transdisciplinar da antropologia, a confluência de distintas referências, a saber: (1) o interesse dos antropólogos físicos pela evolução humana e adaptação da espécie; (2) os estudo etnográficos da até então denominada medicina primitiva e mais recentemente: medicina tradicional; (3)os estudos de fenômenos psiquiátricos na escola de cultura e personalidade; (4) as contribuições da antropologia à saúde coletiva e internacional.[7] Observe-se que em relação a saúde mental as publicações datam do início do século XX, a exemplo das contribuições de Sigmund Freud (1856-1939) para antropologia a partir da psicanálise referendada e contestada por diversos antropólogos como Lévi-Strauss (1908-2009), Malinowski (1884-1942) Géza Roheim (1891 –1953) entre outros, dando origem a conhecida interface da antropologia psicanalítica e mais recentemente à neuroantropologia, ou a busca de nexos entre o cérebro, a mente e a cultura.[9]

A antropologia médica então, se distingue da antropologia saúde ao considerar que a primeira se detém no estudo das patologias e sistemas terapêuticos – a medicina, tal com conhecemos em nossa sociedade, estabelecendo limites difusos com a antropologia biológica e antropologia física, enquanto a antropologia da saúde se detém no conceito ampliado de saúde tal como desenvolvido pela medicina social, ou ciências sociais aplicadas ao estudo da saúde pública. Distinguem-se também por não limitar-se a descrição práticas e saberes de saúde, como faz a antropologia médica, interpretado-os a partir das cosmologias mágico-religiosas associadas a diversas crenças terapêuticas populares, míope, feito assina-la Nunes [10], às dimensões sociais e políticas na base da produção dos problemas de adoecimento, bem como da sua falta de solução.

Para François Laplantine, o autor de Antropologia da doença, esta ciência estuda a percepção e resposta de um grupo social à patologia, elabora e analisa modelos etiológicos e terapêuticos. Um modelo é: uma construção teórica, caráter operatório (hipótese) e também uma construção metacultural, ou seja, que visa fazer surgir e analisar as formas elementares da doença e da cura - sua estrutura seus invariantes tornando-o comparável a outros sistemas.[11]

Outra contribuição relevante de nossos dias vieram de Arthur Kleinman. Segundo esse autor, observando-se a trajetória de pacientes e curadores no contexto cultural distingue-se na organização social o sistema cultural de cuidados de saúde (Health Care System) correspondendo a estas práticas: a o setor ou medicina popular / familiar, conhecida e praticada por todos; a medicina tradicional, que exige um especialista formador – a relação mestre/ discípulo e finalmente o setor médico profissional que se caracteriza-se por possuir escolas formais e hegemonia social.[12]

A esses setores correspondem modelos explicativos dos profissionais e dos pacientes e suas famílias, alguns autores que a interação de tais símbolos em uma rede semântica corresponde à construção de realidades médicas que conjugam, normas, valores, expectativas individuais e coletivas, comportamentos ou formas específicas de pensar e agir em relação à doença e saúde.[13]

Uma outra maneira de entender as regras e técnicas e rituais que emergem da vida prática de distintas sociedades (incluindo a nossa) é sua abordagem enquanto processo cognitivo (epistéme) ou racionalidades.[14]

 
Xamã dos povos Tunguses da Sibéria, 1883.

Racionalidade médica, na terminologia proposta por Luz (1988) [14] , essencialmente útil para quem pretende comparar elementos (o que é uma exigência do método estrutural). Segundo essa autora, uma racionalidade médica ou sistema lógico e teoricamente estruturado, tem como condição necessária e suficiente para ser considerado como tal, a presença dos seguintes elementos:

  1. Uma morfologia (concepção anatômica);
  2. Uma dinâmica vital ("fisiologia");
  3. Um sistema de diagnósticos;
  4. Um sistema de intervenções terapêuticas;
  5. Uma doutrina médica (cosmologia).

Um século de contribuições

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Tal ciência aplicada pode ser melhor compreendida tanto pela análise da produção de trabalhos produzidos por antropólogos e demais cientistas sociais como pela especificidades da área de aplicação e suas interfaces com demais ramos do conhecimento.

Assim como a própria antropologia, tais estudos se iniciaram com as descrições etnográficas do século XIX, assim temos descrições do xamanismo, e das “medicinas tradicionais” e “medicinas populares” entre as proposições teóricas do começo do século XX destacamos as contribuições de Marcel Mauss (1872 – 1950) em especial a criação da noção de técnica do corpo, entendendo o corpo humano como o primeiro e mais natural instrumento do homem nos permitindo comparar as intervenções obstétricas, cuidados de puericultura, higiene, sexualidade etc. e as distinções que faz entre magia, religião situando a prática dos curandeiros, analisando o poder dos enfeitiçamentos e crenças incluindo as célebres descrições de “morte sugerida” ou induzida por feitiçaria na Austrália e Nova Zelândia fenômeno psicossomático posteriormente estudado pelo fisiologista Cannon W. B. (1942) nas suas descrições da relação cérebro - emoção.[15]

O processo de consolidação da antropologia médica, enquanto subdisciplina ou aplicação da antropologia, é relativamente recente. Pereira,[16] em artigo de revisão, situa sua origem ao longo da segunda metade do século XX, constatando sua ausência na antropologia clássica e nos registros etnográficos. Assinala que com a exceção de W.H. Rivers (1864-1922) e Clements, os estudos sobre concepções "primitivas" das doenças e seus tratamentos integravam-se as pesquisas sobre crenças e suas dimensões mágico-religiosas. Rivers publicou em 1924 "Medicine, magic and religion" [17] e Clements em 1932 "Primitive Concepts of Disease" [18]

Além das contribuições de Rivers e Clements, McElroy (o.c.) [7] destaca ainda as contribuições do médico historiador Erwin Heinz Ackerknecht (1906-1988) autor de "Primitive Medicine and Culture Pattern" (1942) e "Natural Diseases and Rational Treatment in Primitive Medicine" (1946) entre outros trabalhos afins.

As práticas mágicas e simpatias em seus aspectos sociais e psicológicos estão entre os objetos de estudo de Mauss, que mais produziram ecos e até hoje permanecem na lista de interesses do antropólogo voltado para as questões do processo saúde – doença, repleto de excelentes descrições obras clássicas com “Bruxarias, Oráculos e Magia entre os Azande” de E. E. Evans-Pritchard com sua cuidadosa descrição da farmacopéia mágica e outras características religioso-étnicas desses povos da África Central [19] ou “Pensamento Selvagem” de Claude Lévi-Strauss, que nos propõe um caminho da compreensão do pensamento mágico e mitologia a partir da comparação das “operações” deste com o pensamento científico delimitando suas relações com a intuição sensível, predominante nas analogias do primeiro, e com a percepção – observação na lógica do pensamento científico.[20]

Também é objeto da antropologia médica o modo como se formam os distintos agentes de cura, o modo como estes modificam a realidade institucional/ cultural em distintos países e organizações sócio-econômicas e o modo como se produzem e distribuem (consomem) ações e serviços de saúde, aliás a OMS, Organização Mundial de Saúde, tem estimulado desde sua fundação a associação das medicinas tradicionais à prestação de serviços primários de saúde a exemplo da bem sucedida criação dos médicos de pés descalços na China.[21]

Antropologia da Saúde no Brasil

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Pesquisas sobre as contribuições da antropologia à Medicina, Fisioterapia, Psicologia / Psicanálise, Enfermagem, Odontologia e outras áreas da saúde em estudos específicos sobre essa produção em periódicos e congressos científicos nos revelam que o Brasil, centenas de estudos exploram as relações entre saúde, doença e cura na religiosidade popular, nos sistemas etnomédicos indígenas e religiões - medicinas de matriz africana (candomblés e práticas médico religiosas de afro-descendentes) versam sobre representações do corpo e cuidados corporais, categorias de alimentação, condições de vida da classe trabalhadora, saúde mental e mesmo sobre as práticas médicas alternativas ou complementares.[22][23][24][25][26]

Os estudos mais antigos tentam relacionar as práticas populares (folclore) às tradições formadoras de nossa cultura, analisando inicialmente segmentos étnicos e a cultura no meio rural e os estudos mais recentes, voltam-se para o meio urbano e as distintas classes sociais que caracterizam os conflitos da sociedade capitalista em transformação. As pesquisas mais recentes tendem a integrar as teorias que dão conta dos dados etnográficos (o particular) ao processo socioeconômico e cultural mais amplo (o geral).[27][28]

Referências

  1. SANTOS, Alessandra Carla Baia dos et al . Antropologia da saúde e da doença: contribuições para a construção de novas práticas em saúde. Rev. NUFEN, São Paulo , v. 4, n. 2, dez. 2012 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-25912012000200003&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 10 set. 2015.
  2. MINAYO, Maria Cecília de Souza. Contribuições da antropologia para pensar e fazer saúde. In: CAMPOS, Gastão Wagner de Sousa et al. (Orgs.). Tratado de saúde coletiva. 2. ed. São Paulo: HUCITEC; Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2009. p. 189-218 ISBN 85-271-0704-X
  3. SEVALHO,Gil; CASTIEL, Luís David. in: Epidemiologia e antropologia médica: a possível in(ter)disciplinaridade in: ALVES, PC., and RABELO, MC. orgs. Antropologia da saúde: traçando identidade e explorando fronteiras [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ; Rio de Janeiro: Editora Relume Dumará, 1998. 248 p. ISBN 85-7316-151-5. Available from SciELO Books PDF Arquivado em 3 de março de 2016, no Wayback Machine. Aces. Set. 2015
  4. DURKHEIM, Emile. As regras do método sociológico. SP, Martins Fontes, 2007
  5. HELMAN, Cecil G. Cultura, saúde e doença. (1984) Porto Alegre, Artmed, 2009. ISBN 978-85-363-1795-3. p.11-25
  6. Helman, Cecil G. (30 de junho de 2009). «Doença versus Enfermidade na Clínica Geral». Campos - Revista de Antropologia (1): 119–128. ISSN 2317-6830. doi:10.5380/cam.v10i1.18582. Consultado em 25 de dezembro de 2022 
  7. a b c McELROY, A. Medical Anthropology in: Levinson & D. Ember M. (org.) Encyclopedia of Cultural Anthropology. Henry Holt, New York 1996 Entry: Medical Anthropology Arquivado em 1 de outubro de 2012, no Wayback Machine. Aces. abr. 2016
  8. FOSTER, GEORGE M., and BARBARA GALLATIN ANDERSON. Medical Anthropology. New York: John Wiley and Sons, 1978.
  9. GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia. RJ: Zahar, 2001 p. 179-190 disponívem em inglês: Culture, Mind, Brain/Brain, Mind, Culture Aces, abr. 2016
  10. NUNES, Monica de O.. (2014). Da aplicação à implicação na antropologia médica: leituras políticas, históricas e narrativas do mundo do adoecimento e da saúde. História, Ciências, Saúde-manguinhos, 21(2), 403–420. https://doi.org/10.1590/S0104-59702014000200003
  11. LAPLATINE, François. Antropologia da Doença. SP, Martins Fontes, 1991
  12. KLEINMAN, Arthur Concepts and a Model for the comparison of Medical Systems as Cultural Systems. IN: CURRER,C e STACEY,M / Concepts of Health, Illness and Disease. A Comparative Perspective, Leomaington 1986
  13. UCHOA, Elizabeth; VIDAL, Jean Michel. Antropologia médica: elementos conceituais e metodológicos para uma abordagem da saúde e da doença. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro , v. 10, n. 4, p. 497-504, Dec. 1994 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X1994000400010&lng=en&nrm=iso>. access on 09 Sept. 2015. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X1994000400010.
  14. a b LUZ, Madel T. Natural, Racional, Social ; Razão Médica e Racionalidade Científica Moderna, Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1988 ISBN 85-7001-497-X
  15. MAUSS, Marcel. As técnicas do corpo. in: MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. SP, Cosac Naify, 2003 p.399-420
  16. PEREIRA, Pedro Antropologia da saúde: Um lugar para as abordagens antropológicas à doença e à saúde. Rev. Exp. de Antropologia 15. Texto 3. (23-46) 2015 Revistas Electronicas UJAEN Es ISSN: 1578-4282
  17. RIVERS, W.H.R. Medicine, Magic and Religion (1924) London, NY: Routledge Classics, 2001 Google Books / Taylor & Francis e-Library 2003
  18. CLEMENTS, F. E. Primitive concepts of disease. American Archaeology and Ethnology, 1932 (185-252). California George and Mary Foster Anthropology Library Ace. Abr. 2016
  19. EVANS-PRITCHARD, E.E. Bruxarias, Oráculos e Magia entre os Azande, RJ, Zahar, 1978
  20. LÉVI-STRAUSSLevi-Strauss, Claude. Pensamento Selvagem SP, Cia Ed Nacional, 1976
  21. OMS – Organizacion Mundial de La Salud. Atencion primaria de salud. La experiência china, Informe de um seminário interregional. Ginebra, OMS, 1984
  22. SÃO PAULO, Fernando. Linguagem médica popular no Brasil; 2v. Rio de Janeiro: Barretto, 1936.
  23. ESTRELLA, Eduardo. As Contribuições da Antropologia à Pesquisa em Saúde IN: Nunes, E.D.; As Ciências Sociais em Saúde na América Latina, Tendências e Perspectivas. Brasília, OPAS, 1985
  24. BETANCOURT, Victor. Babalaô, médico tradicional: a doença, os medicamentos e a ética nas tradições iorubás e no Candomblé. Lauro de Freitas, Ba, Livro.com, 2009 ISBN 978-85-61150-10-5
  25. BUCHILLET, DOMINIQUE. Bibliografia crítica da saúde indígena no Brasil (1844-2006). Quito, Equador, Abya-Yala, 2007 Disponível no Google Livros (Set. 2015)
  26. Puttini, Rodolfo Franco. Curandeirismo e o campo da saúde no Brasil. Interface (Botucatu), Botucatu , v. 12, n. 24, p. 87-106, Mar. 2008 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832008000100008&lng=en&nrm=iso>. access on 09 Sept. 2015. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-32832008000100008.
  27. CANESQUI, Ana Maria. Notas sobre a produção acadêmica de antropologia e saúde na década de 80. in: ALVES, P.C.; MINAYO, M.C.S. (org.) Saúde Doença, um olhar antropológico. RJ, FIOCRUZ, 1994
  28. QUEIROZ, Marcos S.; CANESQUI, Ana M. Contribuições da antropologia à medicina: Uma revisão de estudos no Brasil. Revista de Saúde Pública, SP, v 20 (2); 141-151, 1986

Ver também

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Máscara africana da Costa do Marfim

Ligações externas

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