Eunice Paiva em imagem de arquivo – Foto: TV Globo/Reprodução
ARTIGO
Os artigos e informes publicitários não representam necessariamente a posição de NEO MONDO e são de total responsabilidade de seus autores. Proibido reproduzir o conteúdo sem prévia autorização
Por – Daniel Medeiros*, articulista de Neo Mondo
Depois de assistir pela segunda vez o filme de Walter Salles e reler o livro do Marcelo Rubens Paiva pude, enfim, compreender a razão de a história de Eunice Paiva e sua família ter me emocionado tanto. O filme ( e o livro) retratam um episódio de como a perda da humanidade é devastadora para as defesas morais que construímos ao longo dos séculos como uma proteção para o funesto apelo do caos que também constitui a nossa natureza. Já no século V a.C, Sócrates afirmava que era melhor sofrer uma injustiça do que ser injusto, pois A Justiça é um bem que , uma vez conhecido, nunca pode ser ignorado. Logo, somente as pessoas ignorantes são capazes de praticar injustiças. Para Sócrates, o trabalho da nossa vida é o de conhecer quem somos para não nos tornarmos inumanos. Sócrates temia uma sociedade de monstros e por isso, todos os dias, percorria a ágora instigando as pessoas a começarem suas jornadas de descoberta pessoal, reconhecendo para si que até então apenas fingiam saber coisas e que opinavam e interferiam no mundo sem a menor noção do que realmente faziam . Uma vez atingido esse estágio de aceitação da ignorância, Sócrates incitava-os a iniciar a busca, em si mesmos, dos valores que estão , desde sempre, em nós, à espera de nossos esforços para virem ao mundo. “Conhece-te a ti mesmo” era , e é, a receita para nossa humanização.
Leia também: Desafiador
Leia também: A violência seletiva
A violência monstruosa que afetou a família Paiva, só não foi capaz de destrui-los a todos porque naquela casa já havia um entendimento de quem eles eram: humanos. E, como humanos, o impulso diante da brutalidade dos monstros não foi o de vingança ou de ódio, mas o de continuar vivendo. E sorrindo. Mesmo com toda a dor e incompreensão. A filha de Eunice, Eliana, que também foi levada pela polícia, anos depois revelou que foi tocada, apalpada, violada em sua dignidade física e moral. E ela tinha quinze anos. Nas 24 horas em que ficou presa, com um capuz na cabeça, ouvindo o sofrimento dos outros e sem saber o que poderia esperar, Eliana teve uma indesejada lição de como a ignorância é capaz de liberar pessoas e transforma-las em máquinas de horror. Só a sua consciência de quem era, dos valores que a sustentava funcionaram como antídoto às provações pelas quais passou. A família Paiva salvou-se a si mesma porque, assim como Sócrates, sabia que a injustiça é um castigo ainda maior para quem o pratica, porque revela, para sempre, quem aquela pessoa é. Ou melhor: o humano que ela não é.
No fim do texto do jovem Platão, sobre o julgamento de Sócrates, o velho ateniense, já condenado à morte, despede-se dos seus algozes com as seguintes palavras: “Bem, é chegada a hora de partirmos, eu para a morte, vós para a vida. Quem segue melhor rumo, se eu, se vós, é segredo para todos”.
Hoje vemos, diante de nossos olhos, a violência espalhando-se mais uma vez pelo mundo. A alegria de suprir direitos, de constranger pessoas, de humilhar, de rir das diferenças por eles indesejadas. Algozes que se intitulam “pessoas de bem”, “defensores dos valores tradicionais”, quando não passam de ignorantes que afirmam ser o que não são, saber o que não sabem, fazer o que não fazem, como os acusadores de Sócrates, vitoriosos sem causa, bem sucedidos sem méritos, exceto o de contribuírem para tentar diminuir a humanidade dos outros.
A saída? Insistir na nossa humanidade. Sorrir. Os monstros detestam quando mantemos os olhos secos e o sorriso no rosto.
*Daniel Medeiros é professor e consultor na área de humanidades, advogado e historiador, Mestre e Doutor em Educação Histórica pela UFPR.
E-mail: danielhortenciodemedeiros@gmail.com
Instagram: @profdanielmedeiros